O romance de aventuras na literatura europeia: a influência de Wells sobre Bioy Casares
I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore..."
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore..."
Dante Gabriel Rossetti.
No
final do século XIX, a Europa mergulhou literariamente no gênero dos romances
de aventura. A tendência entre os escritores espalhou-se rápido, pari passu ao sucesso das obras do
francês Jules Verne e o contexto histórico da expansão colonialista que animava
os europeus a se lançarem em viagens transoceânicas. Foi nesse período que o
escritor inglês H. G. Wells publicou o seu A
ilha do dr. Moreau (1896), obra que descreve a viagem da personagem Prendick até a
ilha onde o polêmico cientista que dá título ao livro desenvolve pesquisas e
promove experimentos bizarros com animais.
O
romance de Wells foi recebido com receio por parte da crítica epocal. Assim
como o seu contemporâneo O coração das
trevas (1889), de Joseph Conrad, célebre por narrar o choque civilizatório
desumanizador vivenciado pelos negros ante a colonização branca, a narrativa de
Wells também fora urdida com um tom pesado e macabro, que muitos interpretaram
como uma sátira desrespeitosa aos valores da sociedade inglesa, especialmente a
ideia do criacionismo religioso na relação Deus-criador e animal-criatura.
Entretanto,
as críticas não impediram que A ilha do
dr. Moreau viesse a se tornar uma das mais conhecidas obras de Wells e um
dos clássicos universais da science-fiction,
digna mesmo de servir de fonte inspiradora para as gerações seguintes de
escritores.
Nesse
sentido, pelo menos dois grandes nomes da Literatura do século XX embeberaram-se
no romance de Wells. De um lado, no que tange ao protagonismo de animais na trama, encontramos resquícios de sua obra em A Revolução dos Bichos (1945), do também
inglês George Orwell. De outro, quanto ao dilema humano do isolamento social em uma ilha, temos, já na literatura latino-americana, A invenção de Morel (1940), do argentino
Adolfo Bioy Casares. É justamente sobre este último livro que me proponho a tratar.
A amizade de Bioy Casares com Borges: uma letra de crédito de confiança literária
Na história da Literatura, é conhecida a amizade de Bioy Casares
com Jorge Luis Borges – o escritor argentino que figura, à unanimidade, entre
os maiores ficcionistas do século XX. Em colaboração, escreveram, por exemplo,
as Crônicas
de Bustos Domecq (1967) e Um
modelo para a morte (1946). O próprio Borges, em apreciação crítica de A invenção de Morel, escreveu que “Discuti
com o autor os pormenores da trama e a reli; não me parece uma imprecisão ou
uma hipérbole qualificá-la de perfeita.” O tom efusivo adotado por Borges pode levantar suspeitas:
seria a opinião imparcial do crítico literário? Ou a referência à “perfeição” da trama não passaria de um gesto de complacência amistosa?
Decerto, essas desconfianças
acometem o leitor culto, que frequentemente se socorre da crítica,
até para buscar alguma orientação especializada. De qualquer maneira, é o tipo
de dúvida que só se tira lendo o livro – embora, como asseverava Otto Maria
Carpeaux, ser amigo de Borges valia a Bioy Casares uma “letra de crédito de confiança
literária”.
O fato é que A invenção de Morel impressiona menos
pela amizade do autor com o gênio argentino do que por seus méritos literários
próprios. E é isso que torna o romance digno de sucessivas apreciações e notas,
garantindo-lhe a perentoriedade de sua posição nas listas das principais obras
de ficção do século XX.
Um solitário fugitivo apaixonado, vagando por pântanos deletérios de uma ilha condenada: primeira apreciação sobre o enredo
O enredo gira em torno de
um fugitivo da Justiça. Orientado por um comerciante de tapetes italiano, o homem,
desejoso de empreender com sucesso sua fuga, dirige-se ao lugar onde ninguém
iria procurá-lo. Este lugar é uma ilha solitária no Pacífico. Nela, estaria a
salvo da perseguição das autoridades oficiais venezuelanas. Qual o motivo? A peste que
consome todos os que habitam o terreno.
De fato, a ilha para onde
se dirige o prisioneiro já tivera sido habitada anteriormente. Houve mesmo construção
de museu, capela e piscina. Mas nenhum navegador ousava aproximar-se, dado o
risco de contágio pela moléstia misteriosa “que mata de fora para dentro”. “Caem
as unhas, o cabelo, morrem a pele e as córneas dos olhos, e o corpo vive oito,
quinze dias”, descreve Bioy Casares.
Premido pelas
circunstâncias, tão horrível era sua vida, o fugitivo decide partir para a
ilha. Lá chegando, embora a tivesse considerado aparentemente vazia, vem a
descobrir a existência de outros habitantes. Não são selvagens, como haveria de
se supor; parecem muito mais com turistas – “veranistas que habitam o museu”.
De madrugada, um gramofone me despertou. Não pude voltar ao
museu para buscar as coisas. Fugi pelos barrancos. Estou nos baixios do sul,
entre plantas aquáticas, indignado pelos mosquitos, com mar ou córregos imundos
até a cintura, percebendo que antecipei absurdamente minha fuga. Acredito que
aquela gente não veio me procurar; talvez não tenham me visto. Mas sigo meu
destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais parco, menos
habitável da ilha, a pântanos que o mar suprime uma vez por semana. (BIOY CASARES,
2008, p. 13).
A aparição desses
veranistas dá-se de maneira inexplicável. Surgem, pois, “de uma hora para outra”,
cobrindo os capinzais de “gente que dança, passeia e se banha na piscina”. Aterrorizado
pela solidão nos baixios, temeroso de que pudesse se achar enfermiço de alucinações
no cérebro, o fugitivo passa a observar os intrusos, enchendo a cabeça de
dúvidas: por que se arriscam tanto, dançando ao redor de um gramofone sobre os
capinzais das colinas ricas em cobras? Essa intrepidez é especialmente
irritante ao narrador, que se vê encurralado em pântanos deletérios.
A posição do
narrador, eleita por Bioy, é necessariamente dúbia. O livro, escrito sob a
forma de um diário, “para deixar testemunho do adverso milagre” de ser ilhéu de
uma ilha deserta e condenada pela peste, é tomado por intermitentes notas de rodapé de um
suposto editor cujo papel amiúde se cinge a duvidar do relato, como quando o fugitivo afirma que a ilha se chamaria Villings e pertenceria ao arquipélago das Ellice - afirmação ilidida incontinênti.
Aliás, o fugitivo-narrador
passa a adotar um tom cada vez mais pessimista, jamais ficando claro na obra, até pela parcialidade da narração em primeira pessoa, se
a condenação que o levou a ilha fugido foi justa ou injusta.
Sinto com desagrado que estes papéis se transformam em
testamento. Se devo me resignar a tanto, farei que minhas afirmações possam se
comprovar, de modo que ninguém, por me suspeitar falsidade, julgue que minto ao
dizer que fui condenado injustamente. (BIOY CASARES, 2008, p. 17).
A trama prossegue. No seu
decurso, observa-se que o fugitivo explora as construções da ilha, alojando-se
no museu. Já está cada vez mais próximo dos veranistas. Quem seriam eles,
afinal?
A primeira descoberta de
identidade, no entanto, não se dá pela perquirição investigativa de um ilhéu
sobrevivente. Dá-se pelo amor. Na verdade, talvez fosse mais preciso falar-se
em “paixão platônica”, que é o que o fugitivo termina por desenvolver pela
mulher que, todas as tardes, as mãos juntas sobre os joelhos, observa o crepúsculo
da ilha.
Na verdade, um dos momentos
mais lindos do livro encontra-se no platonismo dessa estranha relação que se
trava entre o fugitivo-observador, de um lado, e a mulher de feições
espanholas, de outro. É fantástico notar a criatividade do escritor argentino
em inserir num enredo de solitude assombrada, de ruídos solitários do mar, de
inquietude daquele que se vê atormentado pelos passos misteriosos ante o medo
do desconhecido, um elemento de sentimento amoroso. Mais do que isso, a maneira
com que Bioy Casares urde essa relação nos limites do ciúme e do temor de ser
capturado pelos “veranistas intrusos” é sublime. Há um sentimento que
impulsiona o narrador a ter esperanças na ilha deserta, arriscando o sigilo de
sua própria condição. Valeria a pena fazê-lo em prol de um sentimento nascente
e fadado ao fracasso? Para a personagem principal do romance, sim.
Não espero
nada. Isto não é terrível. Com esta conclusão, ganhei tranquilidade.
Mas essa mulher
me deu uma esperança. Devo temer as esperanças.
Observa os
entardeceres todas as tardes; eu, escondido, a estou observando. Ontem, hoje de
novo, descobri que minhas noites e meus dias esperam essa hora. A mulher, com a
sensualidade de cigana e o lenço colorido, grande demais, me parece ridícula.
Contudo, sinto, um pouco talvez por pilhéria, que se pudesse ser visto um
instante, interpelado por ela um instante, afluiria juntamente o socorro que o
homem encontra nos amigos, nas namoradas e nos que estão em seu próprio sangue.
(BIOY CASARES, 2008, p. 26).
Graças a essa paixão
platônica por Faustine, a personagem que protagoniza a história há de lançar-se
cada vez mais próximo aos demais habitantes da ilha. Desejando conquistar o
coração da mulher que contempla silente todas as tardes o arrebol, o fugitivo,
quase um morto insone, lança-se aos galanteios do costume, porém é desprezado.
Ocorre que esse desprezo é um desprezo incomum: nele não há uma negativa
peremptória. A mulher apenas o ignora, como se o fugitivo não existisse. Seria a
condição solitária indigna? Que mistério haveria para fazê-lo tão detestável
aos olhos daquela mulher? Por que não lhe dizia sequer uma palavra? Ao menos
uma recusa?
Estava para
dizer que aí se manifestavam os perigos da criação, a dificuldade de possuir
diversas consciências equilibradamente, simultaneamente. Mas de que serviria?
Esses consolos são lânguidos. Tudo se perdeu: a vida com a mulher, a solidão
passada. Sem refúgio, perduro neste monólogo que, a partir de agora, é
injustificável. (BIOY CASARES, 2008, p. 42).
E é assim que, avançando
pelos corredores do museu onde se escondia, entre passos azafamados em fuga, o
narrador sai do seu esconderijo e presencia como que uma reunião de grupo. Ali
estavam reunidos os turistas, incluindo Faustine. Mas, sobretudo, tinha
destaque um homem, que parecia ser o líder. Era Morel (nome claramente inspirado em Moreau, o cientista do romance de Wells). Ele reunira os
seus, para dar-lhes conta da invenção que criara - e cujas consequências
afigurar-se-iam terríveis para todos os habitantes da ilha, incluindo o próprio
fugitivo...
O limiar da morte em vida e a condição humana de dar-se por morto, para não morrer: segunda apreciação sobre o enredo
No plano da literatura de
ficção científica, A invenção de Morel projeta uma realidade dentro
do qual estão urdidas não apenas relações de ordem repressivo-policialescas
(como a fuga da Justiça de um preso perpétuo), mas também a ideia de uma
existência ilhada pela solidão, pela tristeza, pelo desespero. Como alguém poderia
suportar a languidez de dias que se passam num purgatório tão terrível?
A esse respeito, Otto Maria Carpeaux (2008, p. 131) observou
que
O romancista argentino constrói
seus mundos irreais mas possíveis porque sem contradições internas (...), de
modo que uma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. São mundos
impossíveis dentro da nossa realidade, mas perfeitamente possíveis fora dela,
porque em sua construção não entrou nenhuma contradição. São possíveis
geometricamente, aritmeticamente, logicamente. Mas moralmente?
Ao questionamento, levantado
por Carpeaux, quanto à possibilidade moral do mundo imaginado por Bioy Casares,
é preciso perguntar: de onde parte esse escrúpulo interrogante? A resposta não se pode dar de qualquer maneira, mas deve ser
buscada, segundo entendo, nas primícias do romance. Aí compreendemos a generatriz filosófica da dúvida: que condição humana desventurosa
faria alguém abandonar a vida em sociedade para isolar-se numa ilha?
A opção que se coloca ao
protagonista vai de extremo a extremo. Condenado pela máquina judiciária,
considerando-se injustiçado, que mal haveria na fuga, para salvar sua liberdade e, em sentido lato, sua existência? Qual o sentido de ser
condenado a existir aprisionado perpetuamente sob o gradil das leis dos
homens? Não se estaria a morrer lentamente? Não se estaria a definhar com langor sob os escombros
dos edifícios da burocracia “que nunca falha” no seu mister de “aplicar a
justiça”?
Bioy Casares suscita essas
interrogantes com sua narrativa. E responde-as com uma dúvida ainda mais profunda: é preferível arriscar-se
a morrer em uma ilha condenada pela doença, porém conservando a liberdade, ou ter a certeza de uma vida inteira pela frente, desde já morta por estar-se aprisionado? Não seria esse o limiar da morte em vida?
No fundo, o fugitivo de Bioy Casares
é um retrato da existência de cada um de nós. É uma peça literária ficcional, mas
que bem designa o quão grande pode ser a covardia de condenar a si próprio a uma vida
inteira aprisionada – seja a prisão física ou espiritual. Quantos não estão aprisionados em vida a uma existência desditosa,
reféns de convenções, premidos pelo fastio de ser um humano condicionado
pelas ordens e leis de outrem? Não seria melhor fugir para uma ilha deserta, desligar-se
do mundo, conservando a liberdade, ainda que ciente dos perigos da moléstia
fatal que espera os viajantes? Quem está disposto a pagar o preço desse risco?
No romance de Bioy Casares,
o jogo da vida e da morte tem sua intersecção na liberdade. Não faz sentido
viver aprisionado ao mundo, afogando-se num calabouço respiratório. É melhor fugir, arriscando-se
a morrer, sozinho, como um ilhéu à deriva, a permanecer sob o jugo opressivo de
um Estado que cassa a esperança da liberdade, impondo a reclusão vitalícia,
verdadeira morte em vida.
Por isso, lemos num excerto do romance que “Os que decidem a condenação impõem tempos, defesas que nos aferram à liberdade, dementemente.” E é demente a opção daquele que prefere viver isolado em uma ilha, pesteada de moléstia letal, negando a segurança de uma prisão confortável à sua própria existência tardia e dispensável. É aí que se encontra o anelo de liberdade mais pungente de um ilhéu fugitivo: não esperar nada da vida, para não arriscá-la; dar-se por morto, para não morrer. Afinal, mesmo na solidão de uma ilha deserta e condenada, é impossível estar morto.
Por isso, lemos num excerto do romance que “Os que decidem a condenação impõem tempos, defesas que nos aferram à liberdade, dementemente.” E é demente a opção daquele que prefere viver isolado em uma ilha, pesteada de moléstia letal, negando a segurança de uma prisão confortável à sua própria existência tardia e dispensável. É aí que se encontra o anelo de liberdade mais pungente de um ilhéu fugitivo: não esperar nada da vida, para não arriscá-la; dar-se por morto, para não morrer. Afinal, mesmo na solidão de uma ilha deserta e condenada, é impossível estar morto.
REFERÊNCIAS
BIOY
CASARES, Adolfo. A invenção de Morel.
Trad. Samuel Titan Jr. 3º ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 136 p. (Coleção Prosa
do Observatório).
BORGES,
Jorge Luis. Prefácio. In: ______.
CARPEAUX, Otto Maria. O mundo de Morel. Pósfácio. In: ______.
CARPEAUX, Otto Maria. O mundo de Morel. Pósfácio. In: ______.
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