domingo, 11 de novembro de 2012

CRÔNICA DE UM VOO NOTURNO: um leitor solitário de poesia sobre as sombras do mundo cada vez mais sem luz

O poeta alemão Michael Krüger.
 
Um solitário viajante pelo Brasil 

Ab heute wirft auch mein Schlaf einen Schatten
In die immer lichtloser werdende Welt.
Michael Krüger, "Über Schatten", in: "Ins Reine" (2010).
 
O ano de 2012 tem sido um período de muitas viagens em minha vida. Nesses últimos onze meses, por razões profissionais, estive nas mais distintas regiões do Brasil, indo de Norte a Sul. Foram longas viagens, quase sempre permeadas por mudanças bruscas de temperatura. Estive em Porto Alegre, onde fazia muito frio, para depois viajar até Macapá, onde fazia muito calor. Depois rumei para Brasília, onde o sol escaldava e as árvores desfolhavam tristemente no estio; passei brevemente por São Paulo, aspirando ares de um frio ameno, sob céus de concreto, cinzentos, pesados, até chegar a Curitiba, onde a frialdade impiedosa congelava até os ossos. E, agora, quando se aproxima mais uma dessas minhas viagens (desta vez com destino à Florianópolis), paro e penso no significado da circunstância de ser um "viajante".

Viajar é um prazer, já o comprova o desejo de consumo corrente, associado à maioria das pessoas, de "sair conhecendo todos os lugares possíveis do mundo". É bom que assim seja. Viajar é uma ótima fonte de cultura. Viajando se conhecem lugares novos, pessoas diferentes; viajando renova-se a vida. Mas quando se viaja sozinho a sensação é diferente: há um espaço vazio enorme, esperando para ser preenchido. Há pressa e confusão. Há barulho de turbinas, combustível queimando no motor e avisos de segurança de voo repetidos à exaustão, exaustão quase tão grande quanto a que se nota na fronte maquiada das aeromoças. Da janela, vê-se o mundo diminuir, crescendo a distância da cidade da partida. Mas é no corredor que se observa, com os olhos de um claustrófobo, o quão fácil é limitar a própria vida. Viajar é, portanto, um convite à solidão.
O que poderia, em princípio, surgir como algo ruim (as pessoas temem a solidão), pode vir a transformar-se num espaço de reflexão aguda. Ao menos foi o que busquei fazer nessas viagens: olhei cada detalhe, da mala de mão à criança chorando na primeira fila, descrevendo-os mentalmente como se narrasse um livro. Andando pelo corredor, em direção ao meu assento, concentrei-me, num brevíssimo espaço de tempo, nas feições dos passageiros, buscando, em olhares de esguelha, encontrar os fios da vida que unem cada uma daquelas pessoas. Do casal de namorados na fila 5, ao advogado de postura empertigada na fila 16, da mãe extremosa que cuida do bebê na fila 27 ao idoso que lê o caderno de esportes de um conhecido jornal paulista, completando a fila 32. E ali estava eu, sentado no meu assento contíguo ao corredor, a esperar a decolagem - totalmente sozinho. "Faz parte da minha profissão", concluí ensimesmadamente.
Partida
O avião decola. Eu, como um soldado aferrado ao cumprimento de sua missão, puxo da pasta o primeiro livro. É um compêndio de leis, as principais do País. Nem espero o aviso e o cinto já está apertado na minha cintura. Não convém ser incomodado pelo comissário de bordo. Os demais passageiros ainda se aprumam, buscando a posição mais confortável, e já estou no trigésimo artigo. Uma, duas, três pequenas leis. De repente, mais uns tantos outros títulos, capítulos e seções. Pronto. Acabei a cota de leituras técnicas da viagem. Que fazer agora?
Olho para a minha pasta e tento enganar a mim mesmo. Não vai adiantar fingir que não sei a resposta. Guardo o volumoso compêndio de leis. Eis que arranco com violência o primeiro livro de literatura: é Herman Hesse que me acompanha! E nas páginas de "Demian" eu encontro o conforto do confronto entre o mundo luminoso e o mundo sombrio da juventude cindida do jovem Sinclair. E lá se vai o aviso: aqui se encerra mais um voo... Juro: nem percebi.
Quase todos os voos estão lotados. Não há assentos vazios. Não há espaço. Eu viajo espremido com uma multidão. Paradoxalmente, sozinho. Sou eu e meu sonho. Nada mais.
Em busca do espaço de uma solidão poética
Mas houve um dia, quando saía do aeroporto de Brasília com destino à Curitiba, que me vi diante de uma situação, no mínimo, peculiar. Eram dez horas da noite e o avião estava inacreditavelmente vazio! Pela primeira vez em todas essas viagens, havia espaço sobrando. Ocupei uma cadeira, duas outras ao meu lado esperavam passageiros que não vinham. Numa aeronave de mais de cem lugares, se vinte estivessem ocupados seria muito! A cinscunstância de viajar num voo "quase particular" agudizou meu vício literário, porém afastou o romance. Eu queria ler poesia!
Lembrei-me, então, do poeta alemão Michael Krüger e de como ele descrevera um voo noturno, versificando-o: [1]      
Nachtflug [2]
Weil alle Flugzeuge verspätet landeten
und nicht mehr abheben durften,
kamen wir, ein vielsprachiger Rest,
in eine Maschine, die schon ausrangiert war.
Ich saß auf 34 B, in der ungeliebten Mitte,
rechts von mir ein nachtschwarzer Engel,
der seelenruhig seinen Müll sortierte,
links ein Herr, der Platon las, im Original.
Rauchen war nicht verboten, auf Reihe 20
Kam sogar eine Wasserpfeife zum Einsatz.
Im Gang wurde Fußball gespielt, und vorn
In der ersten Klasse übte eine irische Band
das Requiem von Verdi. Auch ich habe mir
meinen Lebensabend anders vorgestellt,
sagte die müde Stewardess und bot Zeitungen na
vom vergangenen Jahr. Der Pilot lächelte
im Schlaf. Wer kommt schon an, wo er hinwollte,
brummte der Engel, und Platon nickte ein.
Gegen Morgen, als auch mir die Augen zufielen,
gingen wir in die Luft.

De repente, sinto como se tivesse ouvido uma uma cigarra cantar dentro do avião. Seria o estágio inebriante de quem sonha ambiciosamente com o espaço infinito? Ou seria um reles devaneio no escuro, de palavras noturnas indizíveis, mas que eu insistia em escutar? 

Zikaden [3]
 
Wer von der Maßlosigkeit träumt,
dem endlosen Raum, der den Raum
überwölbt und das Rufen echolos
aufnimmt in seinem ewigen Mittag,
den sehen wir bald unter den Bäumen
Schattendienst halten: all der Dämmer,
im Umgänglichen wurzelnd,
entmachtet die blicklose Weite.
Und jedes Wort, das gesagt wird,
wird von Zikaden zersägt.
A aeromoça passa com um carrinho. O balanço da aeronove acorda-me. Estava imerso em um sono poético profundo. Já não sabia se era o final da viagem. No fundo, não me importava. Eu me lançava de braços abertos no remoinho de emoções daquela poesia. Não podia (e não queria) parar. Viro a página. A sombra de um passageiro se levanta: ele segue pelo corredor por um rumo que ignoro propositalmente. Mas a sombra ainda atrapalha minha leitura.
As sombras crescem cada vez mais até tomarem todo o espaço do corredor. Vejo-as estenderem-se até a cabine. As luzes estão apagadas. No grande espaço vazio do avião, os poucos passageiros dormem, assaltados pela fadiga noturna. Não me importa. Aperto um botão: uma luz amarela acende sobre minha cabeça. Ela ilumina meus olhos, as lentes dos meus óculos, como que refletindo meus pensamentos. Sinto uma vertigem. Num átimo estou cego. No outro, já enxergo e viro outra página do livro. Agora, leio, atordoado, sozinho no escuro, enquanto a turbulência passa. Mas as sombras não passam. Eu leio sobre as sombras. Leio e lanço  a sombra de um sono que quer derrotar-me. Leio e percebo as más sombras. O mundo está cada vez mais sem luz. 
Über Schatten [4]
 
Ich kannte die guten und die schlimmen Schatten,
die raumlosen Schatten der Träume, in denen Theologen
um einen Zankapfel streiten, und den Schatten,
den Fische werfen und eilige Fliegen.
Mein Grossvater mischte Schatten in die Saat,
damit etwas wächst, was nicht umsonst ist,
und die Spreu sich vom Weizen nicht trennt.
Und einmal sah ich den Schatten von Vögeln,
der hing an den Steinen wie die Wolle am Strauch.
Ab heute wirft auch mein Schlaf einen Schatten
In die immer lichtloser werdende Welt.
 
Chegada

Eis que desce o trem de pouso. Ouço um impacto. O balanço da aeronove acorda-me: chegamos ao solo! Ainda imerso no mesmo sono poético profundo, não sabia se tinha chegado ao meu destino. Sequer me interessava. Embriagado pelas palavras, reconheço: a literatura salvou minha viagem!
Atrapalhado, guardo os livros na pasta. Os outros passageiros já se levantam, prontos para desembarcar. Verifico os bolsos da minha jaqueta. "Não posso esquecer nada", recordo-me de chofre. Estugo o passo e avanço pelo corredor. Despeço-me das aeromoças com um sorriso educado, porém incapaz de esconder meu cansaço. Desço as escadas. Estou de novo em um aeroporto. E reflito sobre a viagem: o que era para ser um fastiento voo noturno tornou-se uma oportunidade de voltar-me àquilo que cotidianamente estive a ignorar: o espaço de uma solidão poética - aguda, profunda, nos céus, preso em um avião! O que era um fardo triste da agonia de um profissional azafamado converteu-se na oportunidade única de reencontrar a mim mesmo. "A poesia preenche um coração vazio, mesmo no mundo cheio de sombras, no mundo cada vez mais sem luz", pensei enquanto tomava o táxi no aeroporto. Fazia muito frio naquela noite em Curitiba.    
 
Notas:
[1] Em respeito ao leitor, eu jamais cito versões originais em idiomas estrangeiros que não estejam traduzidas para o português. Se as traduções não existem, eu mesmo traduzo os textos livremente. A obra poética de Krüger não está traduzida no Brasil, mas, por sorte, encontrei na internet tradução de alguns de seus poemas para o português. As traduções abaixo, portanto, são de autoria de Viviane de Santana Paulo. 
[2]
Voo noturno
Porque todos os voos pousaram atrasados
e não mais puderam decolar,
chegamos, um grupo multilingue,
em uma aeronave que já tinha parqueado.
 
Eu estava sentado na 34 B, na odiada fila do meio,
à minha direita, um anjo negro como a noite
que separava o seu lixo com toda a serenidade da alma, 
à esquerda, um senhor lendo Platão no original.
Fumar não era proibido, na fileira 20
até mesmo um charuto de água teve a sua atuação.
no corredor jogava-se futebol, e lá na frente,
na primeira classe, uma banda irlandesa ensaiava
a Requiem de Verdi. Também eu imaginei
o noturno da minha vida de maneira diferente,
disse a aeromoça cansada oferecendo o jornal
do ano passado. O piloto sorria
sonhando. Quem é que chega, onde se quer chegar,
rosnou o anjo, e Platão acenou com a cabeça.
Pela manhã, quando também os meus olhos cerraram,
levantamos voo.
[3]
Cigarras

Quem sonha com o exorbitante,
do espaço infinito, que cobre
o espaço e o chamado do eco não existente
absorvido em seu eterno meio-dia,
logo veremos debaixo das árvores
o serviço das sombras: todo o alvorecer,
nas afáveis raízes ,
desarmando a distância cega.
E cada palavra dita
será serrada pelas cigarras.
[4]
Sobre sombras
Eu conhecia as boas e as más sombras,
as sombras sem a dimensão dos sonhos, tanto discutidas 
pelos teólogos por causa do ponto de discórdia, e as sombras
que os peixes arremessam e as moscas velozes.
Meu avô misturava sombras nas sementes,
para que algo crescesse o que não é em vão,
e o joio não se separasse do trigo.
E uma vez eu vi as sombras das aves,
estavam penduradas nas rochas como a lã no arbusto.
A partir de hoje, também o meu sonho lança uma sombra
no mundo cada vez mais sem luz.
 
REFERÊNCIAS
KRÜGER, Michael. Ins Reine. Gedichte. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2010. 120 p. 
______. Kurz vor dem Gewitter. Gedichte. Berlin: Suhrkamp Verlag (Auflage: 2), 2003. 111 p.  




Nenhum comentário:

Postar um comentário