quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA E O HEROÍSMO DO INTELECTUAL BRASILEIRO: por que o Brasil nunca ganhou um Nobel?


Prêmio Nobel: a Copa do Mundo que nunca ganhamos 

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
Carlos Drummond de Andrade, "Também já fui brasileiro", in: "Alguma Poesia" (1930).
 
Desde 1901, quando foi concedido ao poeta francês Sully Prudhomme o prêmio, o Nobel de Literatura tornou-se a mais importante premiação que um escritor pode receber pelo conjunto de sua obra. De lá para cá, já houve de tudo: premiações a poetas, contistas, romancistas, dramaturgos, filósofos. Houve premiações mais do que merecidas (Thomas Mann, Herman Hesse, William Faulkner, Gabriel García Márquez, José Saramago, Jean Paul Sartre etc.), outras muito contestadas pela crítica (Toni Morrison, sem dúvida),  além de injustiças flagrantes em relação a autores geniais, mas que morreram sem receber a honraria (Franz Kafka, James Joyce, Jorge Luis Borges, Marcel Proust, Liev Tolstói, Anton Tchecov, Bertold Brecht  etc.). 

O Brasil, como se sabe, nunca recebeu prêmio Nobel em nada, nem em física, nem em medicina, nem em química, nem em economia. É óbvio que me incomoda essa ideia, ainda que o resultado não me pareça de todo desprovido de sentido. É que ser um intelectual, no Brasil, é ato de autêntico heroísmo da parte do candidato. Ele opera no mais absoluto denodo, quase sempre sem apoio institucional significativo, já sabendo de antemão que sua intelectualidade não acarreta prestígio social em uma sociedade de analfabetos funcionais como a brasileira. O intelectual brasileiro, se desejar ver suas obras publicadas, terá ainda de fazer um esforço hercúleo. Na prática, equivale a esmolar aos leitores a leitura de seus escritos, já que no Brasil se lê pouco, muito pouco.

Às vezes, assaltado por pensamentos nada ufanistas, penso que intelectuais do porte do geógrafo Milton Santos deveriam ter recebido um prêmio apenas por sua extraordinária inteligência que, associada ao emprego de extema dedicação, fê-lo fazer-se respeitar em todo o mundo pela qualidade de suas ideias, posto que nascido no Brasil. Na verdade, no Brasil, a opção pela intelectualidade - quando a opção está disponível, é claro, a considerar-se a desigualdade extrema do País - torna o sujeito automaticamente digno  de um "Nobel de Idealismo". Seria como que um prêmio de consolação para quem "deseja produzir conhecimento com seriedade em um País que pouco valoriza isso." Infelizmente, esse prêmio não existe. E até hoje o mais perto que o Brasil conseguiu chegar de um prêmio Nobel foi com o alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira.


Portanto, resignemo-nos com os títulos do futebol, que tanto enchem nosso peito de orgulho. Afinal, no Brasil, ao que tudo indica, vale mais ganhar a taça da Copa do Mundo do que qualquer prêmio Nobel nas distintas áreas do conhecimento humano.

As injustiças do prêmio Nobel de Literatura

A medalha do prêmio Nobel de Literatura

Desta vez, porém, o que me inspira mesmo a escrever é o Nobel de Literatura. E, retomando o raciocínio desenvolvido nos parágrafos introdutórios, a dar conta de que o Brasil encontra-se na fila dos países cujos literatos nacionais nunca receberam o prêmio, tal me parece especialmente doloroso, para não dizer deveras injusto. É triste pensar que escritores do quilate de Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Nélson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto, só para citar alguns nomes canônicos, atingiram as vias de passamento sem receberem a distinção.

Essas são, assim, apenas algumas das muitas injustiças que o mais prestigiado dos prêmios no campo literário já produziu e, creio, continua a produzir, ao menos enquanto nomes como Thomas Pynchon, Philip Roth, Raduan Nassar, Ricardo Piglia, Milan Kundera, Dalton Trevisan, Antonio Lobo Antunes, Don Delillo, Cees Nooteboom, Mia Couto, Ismail Kadaré, Claudio Magris, Umberto Eco etc. continuarem sem o prêmio.

Aliás, os nomes que citei acima são apenas alguns dentre os muitos escritores que mereceriam ser lauredos. De fato, a lista de autores que entendo sejam dignos da prêmiação máxima nas artes literárias é muito mais longa (eu nem mencionei John Irving, Joyce Carol Oates, Táriq Ali, Lídia Jorge, Adonis, Ferreira Gullar). Como seria demasiado enfadonho pôr-me a reproduzir tantos nomes, nem sendo o objetivo precípuo deste texto aduzir o elenco de escritores que aprecio, optei propositalmente em mencionar apenas alguns "nobelizáveis".

O fato é: nenhum autor brasileiro até hoje houve de ter o mérito artístico ou filosófico de sua obra reconhecido pela tradicional Academia Sueca. Justo ou injusto, eis o fato. Que interpretação dar a ele então? Ou, por outras palavras, teria o prêmio Nobel de Literatura uma "função social" no Brasil? 

Em busca da função social do prêmio Nobel de Literatura no Brasil


O escritor chinês Mo Yan, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2012. Foto: France-Presse.

Essa foi a pergunta que me fiz, cogitabundo, assumindo a posição de um leitor inconformado com a realidade de que grandes escritores brasileiros estão a morrer sucessivamente sem que a Academia Sueca deles se tivesse recordado (aliás, antes de falar mal dos jurados suecos, façamos nosso mea culpa: quem no Brasil recordou-se de homenagear Autran Dourado, falecido no último dia 30 de setembro de 2012? Parece até que "Ópera dos Mortos" não significou nada para a literatura nacional...). Foi assim que, imerso nessa reflexão, concluí que o prêmio Nobel de Literatura pode, sim, ter uma "função social"  no Brasil. 

"Função social" é expressão importada dos compêndios de direito. Emprego-a, adaptando o raciocínio originalmente desenvolvido nas letras jurídicas, em especial no estudo do direito de propriedade: tem função social aquilo que, de alguma maneira, possa vir a ser útil para a sociedade. É uma premissa simples, grandemente reduzida por mim, valendo-me da liberdade especulativa de um filósofo. A partir daí, posso tornar ainda mais didática e direta a pergunta inicial: que utilidade para a sociedade brasileira pode ter o prêmio Nobel de Literatura?

Segundo entendo, a circunstância de o Brasil nunca ter recebido um prêmio Nobel apresenta uma dupla função social. A primeira serve como um alerta vermelho para a crise - ora escamoteada, ora ignorada - na cultura literária nacional: o Brasil, que se reconhece grandioso e altivo no futebol, é o mesmo país que recebe tratamento minoritário nas ciências e nas artes, em especial na literatura. O pensamento europeu e estadunidense corrente é o de que Brasil se situa no mundo da cultura como um palhaço no picadeiro do circo: é muito útil ao lazer, com suas paisagens naturais pitorescas, e ao entretenimento fugaz, com suas festas carnavalescas, mulheres desnudas, com curvas lascivas, e bronzeadas pelos mesmos raios de sol praiano que iluminam o brio da equipe de futebol mais vitoriosa no mundo: a seleção brasileira. Lá fora, quando se trata de literatura, o gigante sul-americano se apequena diante de outras nações. É visto como um país distante e irreconhecível, um conto não lido, um romance não folheado. Literariamente, o Brasil carece de confiança, menos pela falta de qualidade de seus escritores (como apontei antes, há artistas da palavra de nível mundial por aqui), mais pela falta de respeito com que é tratado quando se passa ao plano das atividades intelectuais. Numa palavra: ninguém leva a sério o Brasil. A segunda função social do Nobel de Literatura no País é de índole mercadológica: por meio do prêmio, a escolha da Academia Sueca influencia diretamente o mercado editorial, proporcionando ao leitor brasileiro a oportunidade de conhecer autores que, muita vez, embora traduzidos em vários idiomas no mundo, foram obliterados por aqui. Só assim se explica a chance maravilhosa que é travar contato com a obra de escritores russos (Alexander Soljenítsin, Mikhail Sholokhov), sérvios (Ivo Ándritch), suecos (Pär Lagerkvist), guatemaltecos (Miguel Ángel Asturias), egípcios (Naguib Mahfouz), húngaros (Imre Kertész), nigerianos (Wole Soyinka), israelenses (Shmuel Yosef Agnon), islandeses (Halldór Laxness), finlandeses (Frans Eemil Sillanpää), além de poetas gregos (Giórgos Seféris), poloneses (Czeslaw Milosz, Wislawa Szymborska), tchecos (Jaroslav Seifert) e até caribenhos (Derek Walcott). Tenho a mais absoluta certeza de que, não fosse pelo fato comum de que todos foram agraciados com o Nobel de Literatura, tais autores nunca teriam sido traduzidos no Brasil.

Mo Yan, de 57 anos, foi considerando na China "o primeiro escritor chinês a ganhar um Nobel de Literatura", já que Gao Xingjian, naturalizado francês, e vencedor em 2000, não é reconhecido como cidadão do país. Foto: AP.

Não surpreende, assim, que o ganhador do Nobel de Literatura do ano de 2012, o escritor chinês Mo Yan, não tenha nenhuma obra traduzida no Brasil (o ganhador do ano anterior, o poeta sueco Tomas Tranströmer, à época do anúncio do prêmio, só tinha um poema traduzido para o português). De um lado, reconheço haver, por parte das editoras, seríssima dificuldade em encontrar tradutores brasileiros de mandarim - aspecto editorial relevante, visto que muito da qualidade estética de uma obra se perde naquelas, como gosto de chamar, "traduções de permeio", isto é, a tradução da tradução. De outro, há também o desinteresse mercadológico, que, hodiernamente, presume nenhuma viabilidade comercial em autores que, como Mo Yan, exploram fábulas, contos folclóricos e temas do cotidiano rural do campônio chinês (talvez se ele escrevesse sobre bruxos adolescentes ou vampiros luzidios vendesse um pouco mais...). Por ora, resta esperar que as editoras brasileiras encontrem alguém que seja capaz de traduzir direto do mandarim os livros de Mo Yan. Ou, ao leitor açodado, socorrer-se da recente reedição em Portugal do polêmico "Peito grande, ancas largas" (1995), que, sob censura do governo, foi retirado de circulação na China pelo conteúdo sexual e pelo protagonismo dado às mulheres em uma versão épica da luta de classes chinesa.  

De qualquer forma, fica desde já a lição: em vez de lamentar o fato de que a Academia Sueca continua a ignorar os grandes autores da literatura brasileira quando da concessão do prêmio, é bem mais produtivo utilizar-se do rol de literatos galardoados com o Nobel qual uma rica fonte de pesquisa em literatura comparada, aproveitando-se da tradução oportunista de suas obras no Brasil.







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