sábado, 23 de março de 2013

A LITERATURA SE DESPEDAÇA: uma homenagem a Chinua Achebe (1930-2013)

 

Na semana em que o mundo literário comemorou, com absoluta justeza, o aniversário de 80 anos do escritor estadunidense Philip Roth - indiscutivelmente um dos maiores gênios da literatura no século XX e mais do que merecedor do Nobel -, o dia 22 de março de 2013 ficará marcado pela tristeza de um leitor que vê outro gênio (igualmente merecedor do Nobel) morrer. Refiro-me ao escritor nigeriano Chinua Achebe, que morreu na sexta-feira, nos Estados Unidos, aos 82 anos.

Chinua Achebe ficou mundialmente conhecido como o autor do maravilhoso Things fall apart (1958), que eu li em inglês faz alguns anos. Não foi opção ler o romance em idioma estranngeiro, mas sim necessidade, já que, à época, após ler "O Africano", de Le Clézio, eu me interessara pela riqueza cultural da África e, por indicação de uma ex-namorada (a vantagem de namorar mulheres inteligentes e de alto nível cultural é esta: mesmo quando a relação acaba, a influência intelectual positiva fica), chegara até Achebe, cujo romance principal só encontrei disponível em inglês.     

Comecei a ler Achebe mais por curiosidade (talvez a maior virtude que a cachaça da Filosofia pode inocular em alguém) do que por qualquer outra coisa. Preconceituoso, nem esperava muito da prosa de um escritor "africano". Afinal, eu também estava contaminado pela concepção corrente, e absolutamente equivocada, que reduz o continente africano às cenas de desgraça, fome, miséria, genocídios etc. Como um jovem leitor latino-americano, criado nas bases da cultura ocidental "branca", era-me impossível afastar os antolhos que não me permitiam ver uma África que não fosse "coração das trevas" - para falar com a obra-prima de Joseph Conrad.      

Foi graças à literatura de Achebe - e também, em alguma medida, a Le Clézio - que pude superar essa visão correntia, limitada e preconceituosa, sobre a África e a necessidade de uma ocidentalização (europeização) dos seus costumes como condição sine qua non para a "civilidade". Com Achebe, com sua arte, aprendemos, na mesma linha da dramaturgia de Soyinka, a ver a África com os olhos do povo africano, cuja cultura - aí incluídas suas tradições tribais - é merecedora de respeito tanto quanto quaisquer outras manifestações culturais pelo mundo.     

Assim, a leitura de Achebe permitiu-me não apenas suprir uma lacuna vergonhosa na minha formação enquanto leitor e crítico - acostumado ao frio da Alemanha e da Rússia, mas completamente ignorante na cultura dos países de clima tórrido -, não apenas "matou" minha curiosidade; mais do que qualquer outra coisa, lê-lo fez-me perceber a riqueza da cultura e da literatura africanas (no caso de Achebe, para ser mais preciso, da moderna literatura nigeriana). 

A propósito, em tempos de crescente retomada da "Idade das Trevas" no pensamento brasileiro, quando se observa a ascensão de fundamentalistas religiosos, travestidos de líderes políticos de um Estado laico (!!!), que se arvoram a presidir comissões de direitos humanos, a insinuar que os negros africanos são "amaldiçoados por Deus", a leitura de Achebe parece mais importante do que nunca no Brasil. Penso que os romances do escritor nigeriano podem lançar luzes sobre o obscurantismo preconceituoso de alguns apedeutas em História e em Filosofia, especialmente os que insistem em interpretar o pluralismo da vida sob o cabrestão de exegeses bíblicas dogmáticas e anacrônicas - verdadeiros anteolhos da razão.   

Em 2009, a editora Companhia das Letras lançou no País O mundo se despedaça, versão em português de Things fall apart. Nessa edição, além da ótima introdução de Alberto da Costa e Silva, lê-se a tradução dos versos iniciais do poema The Second Coming, de William Butler Yeats:  

O falcão, a voar num giro que se amplia,
Não pode mais ouvir o falcoeiro; 
O mundo se despedaça; nada mais o sustenta;
A simples anarquia se desata no mundo. 
 
E é com esses lindos versos do poeta irlandês que eu encerro esta minha singela, porém contristada, homenagem ao grande artista que foi Chinua Achebe. Com a notícia de sua morte, creio seja possível dizer que, hoje, de alguma maneira, não só o mundo, mas também a literatura, se despedaça.

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