quarta-feira, 1 de maio de 2013

SOLIDÃO AQUÁTICA E SENSIBILIDADE DOS CORPOS: um mergulho em si mesmo em "O Gosto do Cloro" de Bastien Vivés



- Você já se perguntou por quais coisas morreria
e quais nunca abandonaria? Diz pra mim...
- Estou pensando.
- Então?
- Acho que há coisas que eu não abandonaria,
mas não sei se morreria por elas.
- Como o quê?
- Ainda não sei. 
Bastien Vivès, "O Gosto do Cloro" (2008).
 

PREFAÇÃO

A resenha abaixo foi publicada, originalmente, em versão ligeiramente adaptada, no dia 26/04/2013 na seção de Livros do blog Amálgama - atualidade & cultura, do qual sou colaborador. Quem quiser ler a versão publicada no Amálgama, basta acessar o link seguinte:   
http://www.amalgama.blog.br/04/2013/o-gosto-do-cloro-bastien-vives/

Quadrinhos e literatura

História em quadrinhos não é literatura. Eis uma afirmação crível, ainda hoje, para um bom número de leitores. Muitos rejeitam a ideia de atribuir a esse peculiar modo de expressão artística uma conotação verdadeiramente literária. Há mesmo quem argumente que quadrinhos são coisas infantis, faltando-lhes o glamour das grandes obras.  

Esse tipo de pensamento é, claramente, funcionário do atraso. Conservador, ignora os méritos dos quadrinhistas, os quais escolheram fundir a arte da narrativa com o emprego de imagens, o que resulta num produto único e especial, indiscutivelmente merecedor da atenção do leitor.   

Talvez por conta desse preconceito tolo contra os quadrinhos, ao qual me oponho, tenha-se criado até um nome chique, em língua estrangeira, para discriminar os chamados "quadrinhos adultos": graphic novel. Assim, quem lê um "romance gráfico" pode aliviar o sentimento de "culpa" que acomete o leitor conservador. Mas mais culpa deveria sentir quem, vitimado pelo preconceito, deixa de conhecer o que de melhor se produz atualmente nesse ramo. Há simplesmente obras geniais!  

De modo a comprovar o que estou a afirmar acima, decidi escrever sobre O Gosto do Cloro (Le Goût du chlore, 2008), uma das melhores histórias em quadrinhos que já li na vida. O trabalho é de autoria do quadrinhista francês Bastien Vivès, que o escreveu quando contava tão somente 24 anos de idade. De fato, é de per si notável que alguém tão jovem tenha sido capaz de produzir uma obra digna de uma sensibilidade rara, o que revela uma maturidade precoce bastante incomum na literatura.      

A natação como tratamento


Em O Gosto do Cloro, Bastien Vivès, que assina o roteiro e a arte, desenvolve a narrativa a partir de uma premissa relativamente simples: um jovem com problemas de escoliose é aconselhado pelo seu fisioterapeuta a nadar. O objetivo é progredir com o tratamento, de tal maneira que o esporte possa auxiliar a recuperação de sua coluna. Pressionado, o rapaz põe-se a praticar a natação, todas as quartas-feiras, em uma piscina púbica de Paris.     

É justamente na piscina que conhece uma garota, muito bonita, que desperta sua atenção. Ela, diferentemente do jovem, é uma nadadora experta, que conhece muito bem a técnica do esporte. Passa, assim, a ajudá-lo com as braçadas e pernadas. E, após algumas semanas de convivência, a prática do esporte, que para ele era inicialmente um fardo a evitar-se, torna-se um exercício hebdomadário cativante, sobretudo ante a espera da nadadora pela qual se enamorou.

O Gosto do Cloro é uma narrativa curta. Por isso, uma proposta de interpretação do enredo deve atentar para os detalhes aparentemente mais irrelevantes. No contexto da sua concisão, cada quadrinho adquire uma relevância especial para o desenvolvimento da história.

A piscina como limite de um novo mundo


Assim é que, já nas páginas iniciais da obra, ante a insistência do fisioterapeuta, pode-se perceber que o rapaz esquivava-se da recomendação favorável à prática do esporte. Não queria nadar. Contudo, pressionado pela potencial involução do seu tratamento fisioterápico, acaba por acatar a ideia. Nessa simples passagem, tem-se a construção de uma metáfora. O jovem que não quer nadar é o jovem que reluta em adentrar um mundo novo. Porque a natação é o pretexto para mergulhar-se em si mesmo, onde a piscina é o mundo que se está a descobrir. Em O Gosto do Cloro, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, a piscina é a personagem principal.    

O jovem que reluta em dedicar-se à natação aparece também nos quadrinhos iniciais, onde o vemos telefonar para vários amigos. Busca companhia para nadar, convite que é recusado por todos. Sem opção, vai nadar sozinho na piscina. Vai sozinho descobrir um mundo novo, então.

A ideia de uma piscina que funcione como limite de um "mundo novo" reporta-se à maneira com que Vivès desenha sua história. O esporte leva o jovem a um lugar que é "novo" não apenas quanto à sua presença; é novo também pelo ângulo de sua visão, pelo distanciamento das muitas pessoas que nadam na piscina pública, competindo braçada a braçada pelo espaço na água. O jovem é um nadador tímido e desajeitado. Não raro, esbarra em alguém. No fundo, está completamente sozinho. E por causa dessa solidão (aquática, eu diria) sua percepção das pessoas muda, agudizando os detalhes. Agora é possível observar coisas que dantes passavam despercebidas, como uma mulher obesa de maiô que assoa o seu nariz sentada junto à borda da piscina. Mesmo uma simples ducha converte-se em um importante momento de preparação para o nado. O cloro tem gosto.    

A imensidão solitária das águas da piscina 
 
Capa da edição original francesa.

Nesse ponto da história, Vivès já envolveu o leitor no cotidiano da piscina pública de Paris e das suas belíssimas imagens. De fato, impressiona a beleza dos desenhos, acentuando a plasticidade dos corpos quando em contato com a água. Cada braçada, cada movimento, nos traços do autor, ganha um deslumbramento especial. As pessoas parecem flutuar em um ambiente aquático prenhe de sensibilidade, cujos lindes estreitos são determinados pelas bordas da piscina.

Mas a genialidade de O Gosto do Cloro consiste em sustentar quase todo o roteiro na percepção dos movimentos da nadadura com o silêncio permeio. Quase não há balões de diálogo. Tudo o que se vê são imagens, a conduzir a imaginação do leitor pela placidez da água e o movimento plástico dos corpos. As conversas escasseiam; é desnecessário falar, visto que a proeminência pertence ao corpo do nadador, que o autor desenha muita vez desde um ângulo de visão restrito, propositalmente diminuto, a acentuar a imensidão solitária das águas da piscina. 

Nas ilustrações de O Gosto do Cloro, o silêncio prepondera, porque preponderante é a maneira com que se abre a novidade do mundo aquático: silencioso, solitário, para o qual importa mais a percepção morosa dos detalhes que a celeridade no cumprimento das tarefas (figurado no enfado de um tratamento de coluna). Isolado em seu nado, o jovem enxerga o mundo sob novos ângulos, ora amplos, ora reduzidos às mínimas nuanças, como a cor dos lábios impregnados de cloro de uma garota que fala delicada e apaixonantemente sobre como dobrar os braços dentro d'água. O tempo é de uma lentidão sem fim, angustiante. Nos limites das bordas da piscina, as pessoas deixam de ser invisíveis, e os corpos, semidesnudos em trajes de banho, ultrapassam a lascívia excitada por uma sensualidade vulgar. Em O Gosto do Cloro, a sensibilidade dos corpos humanos, nadando nas águas da piscina, é a própria linguagem com que se manifesta a arte que se quer expressar. É como afirma o escritor Paulo Scott na orelha do livro:

Sob a perspectiva da suspensão, da tensão a que se submetem os corpos (falando metaforicamente ou não), notável é a tradução do equilíbrio que só é possível na água: a flutuação, o espaço, a quebra da gravidade, a indução de lar, de aconchego, de retorno; todas essas condições fazem com que estar no ambiente aquático gere um contexto sensorial peculiar. Imergir, deslizar, isolando-se em estados de apneia, olhar.  

Note o leitor que, em nenhum momento, aludo ao nome das personagens. Há apenas o jovem, o rapaz, o amigo, a nadadora. Não há nomes, porque na piscina todos são anônimos. Prevalecem os gestos sobre as palavras. A piscina é um cenário gigantesco, onde o cloro tem o gosto azedo da anonimidade total.  

Mas o azedume do cloro, que irrita os olhos do nadador, é também o que o faz parar, olhar e perceber a garota que nada ao seu lado com movimentos de uma beleza plástica singular. É certo que a beleza da moça chama a atenção, mas a desenvoltura da nadadora é algo admirável. Em pouco tempo, a amizade entre o jovem e a garota desenvolve-se; agora ela o ensina as técnicas da natação. Ele deixa-se encantar, enamora-se. Quem sabe ela não esteja a sentir o mesmo sentimento? Mas tudo o que fazem é nadar, um ao lado do outro, deslizando lisamente nas águas da piscina. Na troca de olhares, nas brincadeiras com a água, há uma pureza cristalina na relação que se desenvolve entre ambos. O mundo todo para quando ele a encontra. O amargo gosto do cloro não parece tão amargo assim. O gosto do cloro agora é doce.        

Entre uma braçada e outra, eis a paixão. O rapaz sente-se cada vez mais envolvido por ela. Porém, não há certeza na reciprocidade do sentimento. A única certeza que o leitor tem é a angústia de um apaixonado diante da beldade que já não mais aparece todas as quartas-feiras para nadar. Sem ela, a piscina é um imenso vazio. O gosto do cloro volta a mudar. Mas agora não é azedo (o jovem que relutava em nadar), nem doce (a motivação de quem se apaixona e quer estar sempre próximo da pessoa amada). O cloro simplesmente não tem mais gosto. Na ausência dela, tudo é insípido, a água é incolor. O tempo é monótono, o esporte é enfadonho, não tem mais graça nadar.  

O francês Bastien Vivès em março de 2012.
Foto: D. Passamonik (L'Agence BD)

Ao projetar o enredo de sua obra, limitando-o às bordas da piscina, Bastian Vivès não apresenta uma simples história em quadrinhos. O Gosto do Cloro, pela originalidade do seu roteiro, e pela beleza dos seus desenhos, representa um dos mais criativos exercícios artísticos de sensibilidade humana. Considerado desde esse ponto de vista, é um trabalho exemplar, digno dos mais elevados elogios na arte narrativa ilustrada. Serve, dessa maneira, como uma excelente demonstração do potencial que o formato de graphic novel pode produzir, arrostando opiniões conservadores, que negam valor literário aos quadrinhos. Mas, ainda assim, penso que reduzir a obra a isso seria pouco. Na verdade, por todo o seu mérito artístico, Bastien Vivès pode orgulhar-se da sua produção. O Gosto do Cloro é uma obra-prima. 
REFERÊNCIAS

VIVÈS, Bastien. O Gosto do Cloro. Tradução de Maria Clara Carneiro. São Paulo: Barba Negra; São Paulo: Leya, 2012. 144 p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário