sábado, 28 de dezembro de 2013

O gosto amargo do veneno digital


 
Este caso do filósofo Paulo, que supostamente incitou o estupro de uma noticiarista, está a merecer reflexão sobre o gosto do "veneno digital".

Segundo me consta, a valer-se de sua conta em redes sociais, Paulo teria desejado, qual voto de ano novo, que Raquel fosse estuprada. "Meus votos para 2014: que a Rachel Sherazedo seja estuprada". A afirmação tornou-se objeto de acirrada polêmica. Com razão, pois não há trivialidade em instigar a violação sexual de outrem.

Quase todos que opinaram sobre a polêmica viram-na como um ato machista. O ofensor, diante da vítima (uma mulher), deseja-lhe não um soco, ou um pontapé, ou que vá para o quinto dos infernos; deseja-lhe mal maior - o estupro. É ato de violência, que subjuga o corpo feminino ante a força bruta do homem. Crudelíssimo, deixa marca indelével: a lembrança. Haverá na memória, permanentemente, a recordação terrível de alguém que a violou contra a sua vontade. O estupro reaproxima o homem da animália. Não há razão, porquanto não há vontade. Tudo que há é instinto, apetite sexual. O meio para satisfazê-lo é a força. A civilização morreu.       

 
Mas não é a perspectiva do machismo das declarações do filósofo que me leva a escrever. Embora essa discussão seja válida no contexto, quero olhar o caso doutra vista. Penso que ele representa mais um exemplo da embriaguez causada pelo "veneno digital".
O veneno digital é substância, mas não do tipo química. Diferentemente das poções tradicionais, que visam a matar o paciente duma vez, o veneno digital é ministrado aos bocados. Sua finalidade é ir minando a reputação de alguém, especialmente quando o atingido é aquele de cujas opiniões alguém se põe a discordar. Em geral, o sujeito acovardado age a destilar o poderoso malefício. Na internet, encontra um meio formidável para divulgar seu ódio, seus insultos gratuitos. Ele não teme repreensão, pois dificilmente mostra a face. Esconde-se em perfis falsos em redes sociais. Ataca, xinga, vilipendia. Tudo sob a proteção de pseudônimos. Usa expressões das quais jamais se valeria na vida pessoal, olho no olho. Seguro da sua anonimidade, o ofensor navega nos mares cibernéticos embriagado pelo veneno digital. Toma taças e taças de achincalhe, de palavrões, de expressões grosseiras. Seu alvo é claro: a opinião divergente. Mas seu raciocínio é turvo: ele não vê senão a própria boca, pronta para malferir, para maldizer; não quer (ou simplesmente não consegue) argumentar. Sem fundamentos, parte para a agressão. Cria apelidos desdenhosos, quase sempre apela para aspectos irrelevantes da vida pessoal. Ou então passa à medida extrema de incitar o crime, como aparentemente fez o filósofo, a destruir sua reputação acadêmica numa atitude ab-rupta e infeliz.     

O que diferencia o caso das ofensas do filósofo Paulo não é seu conteúdo, portanto. A baixeza do ataque já mostra o quilate do contendor. A peculiaridade é que desta vez não houve o sigilo da fonte. Fez-se tudo a descoberto. Desta vez, não há palavra protegida pela anonímia. O autor está nu diante de todos.

A noticiarista Raquel por certo não partilha da visão de mundo do filósofo Paulo. Isso então a torna passível de estupro? Não, é lógico. Mas para ser lógico é preciso ser racional. E um bêbado não é racional. Ainda mais quando sua embriaguez decorre do vinho adocicante do insulto - este repugnante veneno digital. 

Paulo, ao que parece, bebeu do vinho em demasia. Tomou fôlego extra, ficou corajoso. Sem esconder seu nome ou rosto, pôs-se a insultar, a ofender, a humilhar. Escreveu em linguagem vulgar, claramente abusiva. Pior: agiu de maneira gratuita, sem sequer ser provocado pela ofendida. Como um bêbado, deixou de ser filósofo ao exceder os limites da razão. Agora lhe resta a ressaca do dia seguinte. O gosto amargo do próprio veneno (digital).

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