segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

HISTÓRIAS DA MÚSICA: A HISTÓRIA DO CONCERTO DE ANO NOVO DE VIENA: uma homenagem a Lorin Maazel (Neujahrskonzert 2005, Wiener Philharmoniker, Lorin Maazel)


 
Nos marcos do calendário ocidental, a tradição de comemorar a chegada do ano novo muda de conformidade com o país. No Brasil, por exemplo, onde a cultura praiana é muito forte, é comum observar o deslocamento de grandes contingente da população para os balneários. Famílias inteiras buscam as praias, ora a aproveitar o sol, ora as apresentações de artistas populares que ocorrem no período, ora a assistir à queima de fogos de artifício. Há ainda quem prefira frequentar "altas baladas", as conhecidas "festas da virada", a disputar metros quadrados de espaço em boates com jogadores de futebol, ex-participantes de reality show, modelos fotográficas, panicats, reis do camarote, atores e atrizes medíocres, mulheres-fruta e toda sorte de pseudoartistas que habitam o zoológico humano do mundo das "celebridades" e do paupérrimo imaginário cultural da TV aberta brasileira. Estes últimos fazem parte da ala mais medíocre da sociedade (não importa quão grande seja sua fortuna), que tem como trilha sonora, muito apropriadamente, ora o pagode de pieguice ginasial, ora as "pérolas" do sertanejo universitário, onde letristas semianalfabetos celebram a infinita estupidez humana com refrães monossilábicos.        
Para todos aqueles, no entanto, que desejam fugir ao lugar-comum da cultura praiana, ou simplesmente respeitam demais a si próprios para embarcar na "nave louca" dos "reis do camarote", uma das melhores opções culturais na passagem de ano é acompanhar o tradicionalíssimo Concerto de Ano Novo (Neujahrskonzert), promovido pela Orquestra Filarmônica de Viena (Wiener Philharmoniker), na Áustria.   
Uma legítima tradição austríaca
Johann Strauss II (1825-1899) foi o mais talentoso representante
da "dinastia Strauss" na música erudita vienense.
É mundialmente conhecido como "o rei da valsa".
 
A tradição austríaca de comemorar a chegada do ano novo com um concerto de música erudita iniciou-se em 1939. Naquele ano, no dia 31 de dezembro, o maestro Clemens Krauss (1893-1954) conduziu a apresentação da Filarmônica de Viena, cujo programa havia sido inteiramente dedicado a celebrar a dinastia da família Strauss de compositores eruditos. A opção de Krauss por um repertório com obras dos Strauss não era sem razão. Essa notável família de compositores, durante décadas, açambarcou a rica cena cultura vienense. Johann Strauss I (1804-1849) e seus filhos Johann Strauss II (1825-1899), Josef Strauss (1827-1870) e Eduard Strauss (1835-1916) ficaram famosos com suas valsas, mazurcas, polcas e marchas. Posteriormente, Johann Strauss III (1866-1939), filho de Eduard, posto que não fosse um compositor do porte de seus tios ou de seu avô, revelar-se-ia um regente talentoso. Como se percebe, a expressão "dinastia Strauss" remete a uma das famílias musicalmente mais talentosas que já pisaram sobre a face da Terra. 
Além de compositores brilhantes, os Strauss também mantiveram uma relação íntima com a Filarmônica de Viena. Especialmente no século XIX, quando Johann Strauss II chegou a compor uma valsa dedicada à orquestra (a deliciosa Wiener Blut). A propósito, o próprio Strauss filho regeu a filarmônica na apresentação da peça realizada em 22 de abril de 1873. 
A era de Clemens Krauss

O maestro austríaco Clemens Krauss (1983-1954),

fundador da tradição do Concerto de Ano Novo da Filarmônica de Viena.
É interessante assinalar ainda o momento histórico quando do surgimento do Concerto de Ano Novo. Em 1939, a Áustria vivia sob um regime autoritário, forte na doutrina nazista, já que as tropas de Adolf Hitler invadiram o território austríaco no ano anterior e promoveram sua anexação político-militar ao Terceiro Reich germânico, episódio conhecido como Anschluβ. Em consequência disso, os fundos percebidos com a apresentação da orquestra de 1939 foram doados integralmente à campanha de arrecadação de fundos nacional-socialista, denominada de Kriegswinterhilfswerk. Não deixa de ser curioso, então, que um aspecto tão bonito da cultura austríaca tenha vindo à luz num momento em que o país atravessava o esforço da Segunda Guerra Mundial e, internamente, lidava com um regime fascista.    
Em 1º de janeiro de 1941, o maestro Krauss conduziu novamente a Filarmônica de Viena numa matinê. A essa apresentação, deu-se o nome de "Concerto de Johann Strauss".  Como muitos passaram a interpretá-la como um resgate da individualidade cultural vienense no período de guerra, a máquina de propaganda nazista tratou de se apropriar do evento, transformando-o em uma extensão do projeto voltado ao "grande rádio alemão" (Groβdeutscher Rundfunk). Isso, todavia, não impediu o crescimento da popularidade desses concertos realizados no primeiro dia do ano na Áustria.   
Clemens Krauss continuou a conduzir a orquestra nessas apresentações até o final da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, o maestro Josef Krips (1902-1974) assumiu o seu lugar, já que Krauss havia sido banido da regência vienense pelos Aliados. Em 1948, expira o prazo de afastamento, de modo que Krauss retoma a condução da Filarmônica de Viena nos Concertos de Ano Novo, o que se estenderia até o ano da sua morte, em 1954.  
A era de Willi Boskovsky
O maestro austríaco Willi Boskovsky (1909-1991),
que regeu a Filarmônica de Viena no Concerto de Ano Novo
durante 25 anos.
A morte inesperada de Krauss fez com que a orquestra vivenciasse, inopinadamente, o dilema da escolha do sucessor. Não era questão de somenos, se notarmos que Krauss havia praticamente fundado a tradição. Após muita especulação, ficou decidido que Willi Boskovsky (1913-1991), que ocupava a posição de primeiro violino da filarmônica, passaria a ser o novo regente no Concerto de Ano Novo. A decisão, afinal, revelou-se auspiciosa. Boskovsky surpreendeu a cena cultural vienense, a demonstrar qualidades artísticas impressionantes na regência orquestral. Em consequência desse estrondoso sucesso, ele conduziu a Filarmônica de Viena no Concerto de Ano Novo durante várias apresentações exitosas, no período que foi de 1955 a 1979.
Com a decisão de Boskovsky de se afastar da regência do Concerto de Ano Novo, chegou ao fim uma era que durou 25 anos de sucesso. Para inaugurar uma nova fase (pós-Boskovsky) na regência do Concerto de Ano Novo, o maestro escolhido foi o conceituadíssimo franco-estadunidense Lorin Maazel. Coube a ele a direção da orquestra na matinada de 1º de janeiro de 1980. O sucesso foi tão grande que ele permaneceu no posto até 1986. 
Foto da Musikvereinssaal, uma das salas de concerto mais bonitas do mundo,
onde a Filarmônica de Viena se apresenta
tradicionalmente no primeiro dia do ano.
 
Após a apresentação de 1986, os músicos da filarmônica decidiram não mais contar com um regente permanente no Concerto de Ano Novo. Assim, nos anos seguintes, a Filarmônica de Viena passou a adotar a praxe de convidar maestros notáveis para regê-la na apresentação que, até este momento, já se podia considerar um símbolo pujante da cultura musical erudita austríaca.
Foi assim que o grande Herbert von Karajan foi convidado a reger a orquestra no Concerto de Ano Novo de 1987 (até hoje, uma das mais famosas apresentações). Após, outros nomes exponenciais da regência na música erudita dirigiram a Filarmônica de Viena. Exemplarmente, temos os seguintes maestros: Claudio Abbado (1988, 1991), Carlos Kleiber (1989, 1992), Zubin Mehta (1990, 1995, 1998, 2007), Ricardo Muti (1993, 1997, 2000, 2004), Nikolaus Harnoncourt (2001, 2003), Seiji Ozawa (2002), Mariss Jansons (2006, 2012), Georges Prêtre (2008, 2010), Daniel Barenboim (2009, 2014) e Franz Welser-Möst (2011, 2013).   
A era de Lorin Maazel
O maestro franco-estadunidense Lorin Maazel (1930-),
regente da Filarmônica de Viena nos Concertos de Ano Novo
de 1980-1986, 1994, 1996, 1999 e 2005. 
Quanto a Lorin Maazel, após sua saída em 1986, ele voltou a dirigir a filarmônica nos Concertos de Ano Novo de 1994, 1996, 1999 e, finalmente, em 2005. É exatamente esta última apresentação que faço gosto em destacar. Nela se percebe a escolha de um repertório fundado, como não poderia deixar de ser, na homenagem à dinastia Strauss. Dessa maneira, abundam obras do genial Johann Strauss II (Indigo-Marsch, Haute-Vollée-Polka, Tausend und eine Nacht, Die Bajadere, Klipp-Klapp, Nordseebilder, Bauernpolka, o conhecido balé Fata Morgana, Vergnügungszug, Auf der Jagd, New Year's Adress), Josef Strauss (Lustschwärmer, Die Emancipierte) e Eduard Strauss (Electrisch). Mas nem só da obra dos Strauss se resume a apresentação - embora de per si isso já fosse admirável. Outros compositores fazem presença no programa, tais quais Franz von Suppé (Die schöne Galathée: Ouvertüre) e Joseph Hellmesberger (com a polca Auf Wiener Art).   
Particularmente, o virtuosismo de Lorin Maazel evidencia-se quando o programa abrange as partituras compostas em conjunto pelos irmãos Johann e Josef Strauss. Em um primeiro momento, em Pizzicato-Polka, com o maestro a empunhar o violino sem o arco, valendo-se da técnica do pizzicato para compor a sonoridade delicada requerida pelo compositor. Depois, na conhecidíssima valsa Geschichten aus dem Wiener Wald, quando novamente Maazel retoma o violino e participa ativamente como solista na abertura e no encerramento da peça. Simplesmente lindo.     
Homenagem do governo da Áustria a Lorin Maazel à época do Concerto de Ano Novo (2005).
 
Por fim, dessa apresentação, destaco ainda a performance da Bauerpolka, quando os músicos da orquestra põem-se a cantar (sensacional!), além do bis com a execução - sempre obrigatória -  da celebérrima valsa An der schönen blauen Donau (conhecida no Brasil como "Danúbio Azul"), de autoria de Johann Strauss (filho). Uma pena que a outra peça obrigatória do bis, a famosíssima Marcha Radetzky (Der Radetzky-Marsch), composta por Johann Strauss (pai), não tenha sido tocada, em respeito às vítimas da tragédia ocasionada pelo tsunami que atingira o sul da Ásia nos últimos dias do ano de 2004.       
A gravação do Concerto de Ano Novo de 2005 da Orquestra Filarmônica de Viena, sob a regência de Lorin Maazel,  foi lançada pelo selo alemão Deutsche Grammophon. Para todos os amantes da arte, acreditem, o Neujarhskonzert der Wierner Philharmoniker é absolutamente imperdível! 

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