segunda-feira, 16 de junho de 2014

SABRINA (1954): Billy Wilder prova que é possível filmar comédias românticas inteligentes

 
Há algum tempo, em conversa com algumas amigas no trabalho, fui questionado se assistia a comédias românticas. Disse-lhes que sim. Minhas interlocutoras, então, visivelmente surpresas, afirmaram que minha imagem social de crítico rigoroso impunha-lhes o sobressalto, já que “comédias românticas” são filmes “água com açúcar”. Segundo elas, eu não me encaixo no perfil de um espectador desse tipo de longas.     

De fato, elas têm razão. Não sou do tipo que assiste a muitas comédias românticas. Prefiro muito mais um bom faroeste. Mas preferências pessoais não devem tolher os olhos do crítico. Quem se deixa engessar pelo gosto, corre o risco de nunca experimentar o fascínio da descoberta duma grande obra cinematográfica. De outra banda, há o aspecto pessoal. Tive uma namorada que adorava comédias românticas – e fazia questão que eu a acompanhasse ao cinema para assistir a esse gênero de filmes. É aquela velha história: um namoro, para dar certo, implica concessões de lado a lado. Eu a convidava para assistir à minha coleção de DVDs da Deutsche Grammophon com as gravações das sinfonias de Beethoven, sob a regência do magnífico Herbert von Karajan, e ela me levava ao cinema para assistir às comédias românticas. Parecia-me justo.    

Humphrey Bogart, Audrey Hepburn e William Holden formam o triângulo amoroso
que conduz a trama de "Sabrina", de Billy Wilder.
 
No entanto, a audiência desses filmes "água com açúcar" nunca me impediu de deitar-lhes um olhar crítico rigoroso. Submetidos a esse juízo, admito: era difícil aturar a sua maioria. Quase sempre eram histórias românticas, a envolver um casal apaixonado em busca do amor imorredouro. No meio de um enredo insípido, que o mais das vezes calcava-se na exploração da beleza dos seus protagonistas e numa trilha sonora composta propositalmente em tom meloso, surgiam algumas piadas, como que a justificar a ideia de uma “comédia” suavizada pela linha do romance. Em alguns filmes, os gracejos até funcionavam e faziam-me rir; noutros nem isso. No final, minha satisfação principal era ver minha ex-namorada feliz. E só.  

É evidente que o fato de os estúdios de Hollywood atualmente produzirem comédias românticas em escala industrial, a maioria delas muito ruins, não arrefeceu a minha verve de pesquisador da arte.  Movido pela curiosidade, passei a procurar comédias românticas que eu pudesse considerar exemplos genuínos de cinema de qualidade dentro dum gênero tão maltratado. Foi assim que descobri Sabrina, de Billy Wilder.

Sabrina (Audrey Hepburn) e Linus (Humphrey Bogart) dançam
em cena de "Sabrina", de Billy Wilder.
 
Sabrina é um filme de 1954. Apesar de dirigido por Billy Wilder, um dos grandes diretores da “Era de Ouro” de Hollywood, costuma ser lembrado pela sua protagonista: a atriz belga Audrey Hepburn, que se tornou internacionalmente um ícone de beleza e estilo. Com efeito, não foram poucas as vezes que ouvi alguém dizer que "Sabrina é o filme da Audrey".     

A história de Sabrina não é nem um pouco original. Hepburn interpreta Sabrina Fairchild, a moça pobre, filha do chofer da rica e tradicional família de industriais Larrabee. Ela mora, juntamente com seu pai, na luxuosa propriedade onde dois irmãos bem diferentes convivem. De um lado, David Larrabee (William Holden) encarna o típico playboy; ele ama carros velozes e seu esporte favorito é conquistar (belas) mulheres. Em sentido diametralmente oposto, apresenta-se Linus Larrabee (Humphrey Bogart), o primogênito responsável e workaholic, um homem brilhante nos negócios e frio como um cubo de gelo. Sabrina é apaixonada por David desde a infância. Mas o mulherengo bonitão despreza-a. Na cena inicial do filme, ele chega a ser cruel ao insinuar que ela não era “ninguém”. 

Sabrina (Audrey Hepburn) encontra David (William Holden), seu grande amor de infância.
 
Qual a típica heroína romântica, Sabrina sofre pelo seu amado. Sofre tanto e tão intensamente, que tenta suicidar-se aspirando o gás que sai do escapamento dos carros da garagem sobre a qual dorme seu pai. Mas sua tentativa fracassa, interrompida pelo sisudo Linus, que assim a impede de morrer como uma doudivana apaixonada.

No dia seguinte, estimulada por seu pai, Sabrina parte para Paris, onde participará dum curso de culinária francesa. Na capital francesa, sua vida muda quando conhece o barão St. Fontanel (Marcel Dalio), um homem rico e distinto, que a ajuda a transformar-se numa autêntica dama parisiense. 

É essa Sabrina transformada pelos ares de Paris - educada, refinada e cheia de estilo - que retornará à mansão dos Larrabee em Long Island dois anos depois. Imediatamente ela desperta a paixão de David, o homem que secretamente sempre amou. O problema é que o playboy está de casamento marcado com Elizabeth Tyson (Martha Hyer), um matrimônio que é bom para os negócios da família. O fleumático Linus, então, intervém para impedir que o romance de David e Sabrina estrague seus planos de expansão industrial. Arquitetando um plano para afastar o casal, Linus passa a conviver diretamente com Sabrina. Sem perceber, ele próprio vai se apaixonando pela filha do chofer. 

A química do casal interpretado por Bogart e Hepburn é um dos aspectos mais cativantes
do amor romântico em "Sabrina", de Billy Wilder.
 
Como se vê, nesse enredo simples, temos o arquétipo da "Cinderela moderna". Não há nada de novo no roteiro baseado na peça de Samuel A. Taylor. E a história, se conduzida por mãos inábeis, fatalmente estaria condenada ao esquecimento como tantas outras baseadas no mesmo mote. Todavia, o filme é dirigido por Billy Wilder, o diretor que marcou época na “Era de Ouro” com “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950), onde já demonstrara sua capacidade para a condução de dramas. Talentoso, Wilder consegue entreter de maneira inteligente a partir do roteiro previsível dum conto de fadas. O resultado é um filme delicioso, que concilia romance e comédia de forma mui competente.  

Grande parte do sucesso da proposta do diretor reside no triângulo amoroso formado pelos protagonistas. Hepburn, apesar de muito jovem, brilha no papel de Sabrina com seus olhos grandes, expressivos, e seu rosto angelical. Ela encarna com mestria a moça doce e sensível, romântica ao extremo (não nos esqueçamos de que ela tentou até o suicídio!), que, apesar do “banho de loja” que tomou em Paris, continua a exibir a mesma fragilidade diante do amor. Para usar uma expressão popular, Sabrina Fairchild é aquilo que se poderia chamar de “manteiga derretida”, o que fica bem evidente no diálogo travado com seu pai, Thomas Fairchild (John Williams), logo após seu retorno de Paris:

Thomas Fairchild: He's still David Larrabee, and you're still the chauffeur's daughter, and you're still reaching for the moon.

Sabrina Fairchild: No, father. The moon's reaching for me. [1]

Ao lado da protagonista, Holden empresta seu carisma ao playboy que interpreta, tornando-o divertido sem ser canastrão. E, claro, desnecessário dizer que a atuação sempre sólida de Humphrey Bogart constitui o contraponto necessário ao romantismo inconteste de Sabrina: ele não é apenas o industrial frio e magoado com o amor; ele representa o coração de pedra que a doçura de Sabrina há de amolecer.

Sabrina Fairchild: Maybe you should go to Paris, Linus.

Linus Larrabee: To Paris?

Sabrina Fairchild: It helped me a lot. Have you ever been there?

Linus Larrabee: [thinks] Oh, yes. Yes. Once. I was there for thirty-five minutes.

Sabrina Fairchild: Thirty-five minutes?

Linus Larrabee: Changing planes. I was on my way to Iraq on an oil deal.

Sabrina Fairchild: Oh, but Paris isn't for changing planes, it's... it's for changing your outlook, for... for throwing open the windows and letting in... letting in la vie en rose.

Linus Larrabee: [sadly] Paris is for lovers. Maybe that's why I stayed only thirty-five minutes. [2]

Mas Sabrina é uma comédia romântica que, não obstante sua sutileza, desafia temas de forte conteúdo moral. É o que se percebe no temor que sente Linus em deixar-se enamorar por uma moça como Sabrina Fairchild. Avaliando a relação de modo racional, ter-se-ia de enfrentar um fato duplamente escandaloso: o do homem rico, filho de uma das mais tradicionais famílias de Nova York, envolvido com a empregada; mas também o do homem mais velho que se interessa por uma mulher bem mais nova. Convenhamos que, para um filme de 1954, esses temas eram tabus dignos duma sociedade conservadora. Nesse sentido, a afirmação de Thomas Fairchild é sutil, porém duma perspicacidade ímpar:

Thomas Fairchild: Democracy can be a wickedly unfair thing, Sabrina. Nobody poor was ever called democratic for marrying somebody rich.[3]  

Todos esses elementos, somados, convergem para que Sabrina deixe de ser apenas mais uma “história da Cinderela moderna” como tantas outras a que já nos habituamos a ver. O filme dirigido por Billy Wilder tem o mérito de divertir de maneira inteligente, com personagens bem construídos, diálogos inspirados (a justificativa que Linus usa para dar um beijo em Sabrina, a afirmar que “está tudo em família”, é impagável), uma protagonista carismática (Audrey Hepburn empresta a Sabrina um jeitinho meigo que é encantador, diria até irresistível). Acima de tudo, o filme acerta na trilha sonora, que se encaixa com perfeição à trama da moça pobre e romântica que tem sua vida mudada para sempre em Paris (“La Vie En Rose”, de Edith Piaf e Louis Gugliemi, e “Isn’t It Romantic?”, de Richard Rogers com letra de Lorenz Hart, compõem o material sonoro que embala delicadamente o desenvolvimento do triângulo amoroso).    

Portanto, para todos aqueles que procuram uma comédia romântica inteligente, Sabrina, de Billy Wilder, é um filme mais do que recomendado. É o tipo de divertimento que vale a pena compartilhar com a namorada, especialmente se ambos os espectadores estiverem dispostos a abrir a "janela dos seus corações", mudar suas perspectivas e deixar-se enxergar "a vida cor de rosa", tal como propõe a doce e adorável Sabrina.

Notas:

[1] Tradução minha:

Thomas Fairchild: Ele ainda é David Larrabee, e você ainda é a filha do chofer, e você ainda está tentando alcançar à lua.

Sabrina Fairchild: Não, pai. A lua é que está tentando me alcançar.

[2] Tradução minha:

Sabrina Fairchild: Talvez você devesse ir a Paris, Linus.

Linus Larrabee: A Paris?

Sabrina Fairchild: Isso me ajudou muito. Você já esteve lá?

Linus Larrabee: Ah, sim. Sim. Uma vez. Fiquei por trinta e cinco minutos..

Sabrina Fairchild: Trinta e cinco minutos?

Linus Larrabee: Fazendo escala. Eu estava a caminho de um negócio de petróleo no Iraque.

Sabrina Fairchild: Oh, mas Paris não é para fazer escala. É para mudar suas perspectivas, para abrir as janelas e poder ver… ver a vida “cor de rosa”.

Linus Larrabee: Paris é para os apaixonados. Vai ver foi por isso que fiquei apenas trinta e cinco minutos.

[3] Tradução minha:

Thomas Fairchild: A democracia pode ser uma coisa perversamente injusta, Sabrina. Ninguém que seja pobre foi chamado de “democrático” por se casar com alguém rico.

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