domingo, 30 de novembro de 2014

UM ARTISTA EM BUSCA DE SUA PRÓPRIA VOZ: "David Fray: J.S. Bach - Swing, Sing and Think" (2008), de Bruno Monsaingeon



Quem gosta de música, porém nunca teve uma experimentação profissional na área, dificilmente pode ter a exata percepção do quão exigente é o processo de gravação de uma obra musical. O artista que se arvora a lançar um álbum deve preparar-se regiamente em sentidos os mais variegados: na escolha do repertório, no tratamento dado pela direção musical, na definição dos grupos ou músicos que participarão da gravação e em quais faixas. Todos esses elementos precisam ser devidamente articulados, sob pena de o resultado final resultar inócuo - na melhor das hipóteses - ou ruim - na pior das hipóteses.

É claro que minhas observações reportam-se ao artista versado em música erudita, cuja seriedade no tratamento da arte musical é patente. Não que não haja seriedade no âmbito da música popular. Não se trata disso. Apenas o apelo da indústria fonográfica, voltado à produção de pseudoartistas comprometidos com o fabrico do dinheiro, muita vez compromete esse processo. Assim, ressalvadas algumas exceções, na música popular, o mais das vezes, a gravação termina por se cuidar de um processo inconsciente, ditado menos pela verve proposital-conceitual do artista que do produtor musical – especializado em vender álbuns e colocar hits nas "paradas", não importa o quão tosco e amador seja o resultado final.  

Como quem trabalha com música erudita lida com um mercado consumidor bem menos rentável que o da música pop, associado ao fato de que ouvinte típico desse estilo é infinitamente mais exigente, resta ao músico o fardo de encontrar sua própria voz em meio a um vasto rol de intérpretes – cada um melhor que o outro. E isso definitivamente não é tarefa fácil.

É no rastro desse afã que acomete todo grande artista, no sentido de imprimir sua própria assinatura à interpretação de uma obra conhecida, que se deve apreciar o DVD “David Fray: J. S. Bach – Swing, Sing & Think”, dirigido pelo documentarista Bruno Monsaingeon. O documentário acompanha as sessões de gravação do primeiro álbum do jovem e virtuoso pianista francês David Fray, focado em três dos mais famosos concertos bachianos para piano e orquestra. Ocorridas em janeiro de 2008 para o selo Virgin Classics, as sessões de estúdio captadas pelo filme permitem ao expectador apreciar o esforço que envolve a atividade de um jovem músico erudito em busca de afirmação artística, máxime de um artista em busca de sua própria voz.

Dessa maneira, a busca de Fray é mostrada pelo diretor sob ângulos distintos: na casa do pianista em Paris e no estúdio de gravação ao lado da “Deutsche Kammerphilarmonie Bremen” - uma das mais respeitadas orquestras de câmara de toda a Europa. Em ambos os momentos, procura-se mostrar o quão exigente é o artista na definição de uma identidade única à intepretação do repertório. Sobretudo se considerarmos que o pianista se propõe a gravar três dos mais famosos concertos de J. S. Bach (Concerto nº 4 em Lá Maior, BWV 1055; Concerto nº 5 em Fá Menor, BWV 1056; Concerto nº 7 em Sol Menor, BWV 1058), a responsabilidade aumenta inda mais. Como dar à sua gravação a autenticidade inerente ao trabalho do verdadeiro artista? De que interpreta uma obra do barroco alemão largamente conhecida e executada pode ser recriada pelas mãos de um jovem músico erudito?

Monsaingeon centra seu documentário na resposta a essas perguntas. Assim, o que se observa durante mais de uma hora é o esforço admirável de um jovem talento da música erudita em busca de sua própria voz artística. É maravilhosa a experiência de ver o pianista a fazer observações para a orquestra de câmara que o acompanha nas sessões de gravação, a mostrar-nos que a inteligência musical não pode (não deve) esgotar-se na mera execução da mecânica pianística. Vai além e requer uma compreensão profunda da obra que se pretender interpretar - algo que invariavelmente não está gravado nas partituras do século XVIII e só se pode adquirir após audições atentas da estética barroca. O filme registra todo o processo: os ensaios exaustivos, os momentos de discussão, até aqueles mais descontraídos (muito instigados pela excentricidade do jovem pianista).

O grande mérito do documentário é, afinal, permitir que o espectador possa adentrar um momento raro no processo de consolidação de uma carreira artística, isto é, a gravação de um álbum. A câmera esperta de Monsaingeon flagra esse momento íntimo de David Fray. Seja na privacidade do seu lar em Paris, seja em estúdio com a Orquestra de Câmara de Bremen, pode-se ter uma visão privilegiada da cabeça do artista, que não apenas domina a partitura, mas também se vê obrigado a conduzir a interpretação orquestral da maneira que lhe parece coadunar com sua “voz”, aquela identidade única que torna um músico digno de respeito e admiração.
 

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