domingo, 25 de janeiro de 2015

O HOMEM É O ANIMAL MAIS CRUEL: "True Detective" (2014) consagra Nic Pizzolatto como o criador de um clássico instantâneo do gênero policial na TV


Em 1995, numa pequena cidade sita ao sul de Louisiana, um crime chocante acontece. O corpo de uma mulher é encontrado numa área de fazenda. Nua, prostrada defronte de uma árvore com os olhos vendados e as mãos amarradas, ela ostenta uma coroa de chifres de veado sobre sua cabeça. Seu abdômen exibe múltiplas perfurações com faca. No dorso, há o desenho do que parece ser um símbolo satânico.
 
Os detetives Rust Cohle (Matthew McConaughey) e Martin Hart (Woody Harrelson) são designados pelo Departamento de Investigação de Homicídios da Polícia do Estado de Louisiana para acompanhar o caso. No curso das suas investigações, a vítima é identificada como Dora Lange, uma prostituta que trabalhava na região. Ocorre que esse não parece ter sido um assassinato isolado, pois as circunstâncias remetem ao caso de Marie Fontenot, uma garotinha desaparecida alguns anos antes. E assim tem início a perseguição do que parece ser um serial-killer que mata suas vítimas com requintes de crueldade em rituais macabros.

Esse é o mote que conduz a trama da primeira temporada da série de TV True Detective (EUA, HBO, 2014). Como se percebe, ele não é muito diferente da quase totalidade das narrativas policiais disponíveis em livros, em filmes ou mesmo em outras séries produzidas para a televisão. Na verdade, originalidade não parece ter sido a preocupação de criador Nic Pizzolatto. Ele não se acanha em lançar mão dos clichês mais batidos do gênero: a relação conflituosa entre a dupla de policiais, um dos quais é um sujeito com grave defeito de caráter, enquanto o outro amargura uma vida particular desastrosa; a interferência da chefia do Departamento Policial no curso das investigações, atrapalhando-a, premida pela iniciativa política de líderes religiosos poderosos da região, preocupados com o pânico causado pela ameaça de um serial-killer adepto de alguma seita satânica.      

Matthew McConaughey e Woody Harrelson em cena de "True Detective".
 
O que faz de True Detective, então, a melhor produção para a TV no ano de 2014? Simples: a solidez do roteiro, capaz de dar uma profundidade inesperada a clichês incessantemente esclerosados dentro do gênero policial.

Por mais de uma vez tenho escrito que o problema com uma obra não são os clichês dos quais o criador apropria-se. Tudo o que importa é o que se faz deles no desenvolvimento de uma história. Com talento, é possível usar de arquétipos repetitivos e, ainda assim, criar entretenimento da mais alta qualidade.

Com True Detective, Pizzolatto prova isso. Os detetives Cohle e Hart não são apenas dois parceiros a chocar-se em seus métodos de trabalho; são o espelho forçado um do outro dentro de uma sociedade terrivelmente hipócrita.

Rust Cohle é um sujeito solitário, de poucas palavras, que quase nunca fala de si próprio. Sabe-se apenas que cresceu no Alaska, trabalhou no Texas, de onde foi transferido para Louisiana. Vive atormentado pelo passado, machucado pelo fim do seu casamento após a morte de sua única filha. Viciado em remédios, bebida e cigarro, costuma ver “fantasmas”, ter “alucinações”. Ateu convicto de postura misantrópica, tem uma péssima relação com seus colegas policiais. Em resumo: ninguém gosta dele - nem ele próprio.  

Matthew McConaughey e Woody Harrelson em cena de "True Detective".
 
Já Martin Hart é o seu oposto. Sorridente, cultiva amigos por onde passa. Bem relacionado no Departamento, ocupa um posto de chefia na Divisão de Investigações. É o típico homem do interior sulista conservador: crente em Deus, cultiva uma aparência de respeitável pai de família, a sustentar um casamento aparentemente bem sucedido com uma linda esposa.      

Nesse sentido, Pizzolatto poderia ter-se limitado à obviedade de conduzir as suas personagens em conflitos previsíveis, ao passo em que perscrutam pistas para encontrar o assassino. Mas True Detective destaca-se de outros seriados ao optar pela lógica da desconstrução de estereótipos. E é isso que o torna um programa excepcional.

Ao longo dos oito episódios que compõem a primeira temporada, o telespectador vai-se defrontando não apenas, como seria esperável, com as anormalidades nefandas de um maníaco assassino cruel e excêntrico, ligado a um ente demoníaco chamado “O Rei Amarelo” (Pizzolatto usa como referência a peça ficcional que permeia a coletânea de contos sobrenaturais “The King in Yellow”, publicada em 1895 pelo escritor estadunidense Robert W. Chambers). Na realidade, a condução da trama alterna passado e presente, de modo que a busca pela identidade do criminoso serve como pretexto para uma percuciente investigação acerca das virtudes e falhas de caráter de Cohle e Hart. Dessa maneira, a personalidade de cada um dos detetives põe-se a desnudo.

A falta de meritocracia do sistema de justiça criminal é manifesta. Não obstante ocupe uma posição de chefia na Divisão, Hart é indolente para o trabalho e conformista, a comprovar que seu realce dá-se menos por sua competência ou dedicação ao serviço que por suas boas relações em sociedade. Enquanto o execrável Cohle (ateu e misantropo) faz às vezes de um homem isolado, obcecado pelo trabalho, sempre insatisfeito, atento aos menores detalhes, a burilar indícios que o coloquem no encalço do assassino, o exemplar pai de família cristão Hart gasta suas noites a beber e trair sua esposa. No dia seguinte, sem a menor condição de trabalhar, sustenta-se nas costas de Cohle, a quem acusa - ironicamente – de viver uma vida “anormal”, sem escusar a ideologia contestável de quem “trai para o bem do casamento”. Questiona-se assim a hipocrisia de uma sociedade machista e conservadora, que condena o workhalolic Cohle – pelo seu ateísmo resiliente e aversão às pessoas -, ao passo que idolatra a irresponsabilidade e falta de integridade de um adúltero contumaz e policial incompetente como Hart, projeto fracassado e hipócrita do american way of life.

Matthew McConaughey interpreta o detetive Rust Cohle em "True Detective": melhor atuação da sua carreira.
 
Quem é “normal” nessa sociedade? E quem é “anormal”? Quem está apto a apontar o dedo no rosto do outro? Quão doentia pode ser a nossa sociedade? Quem é afinal o animal mais cruel?

Dilemas morais como esses são jogados a todo o momento na cara do público. Supõe-se um típico jogo policial de “cão e gato”, mas o telespectador vê-se aprisionado pelo questionamento impiedoso das falhas de caráter escondidas no passado de cada um de nós - e que são responsáveis, em larga medida, por moldar-nos no presente.

Naturalmente as ações morais controvertíveis das personagens adquirem credibilidade graças à direção primorosa de Cary Joji Fukunaga, a produção irretocável proporcionada pelo canal HBO, além do elenco afiado, nomeadamente Woody Harrelson (um ator limitado, que tem no currículo porcarias como “Zumbilândia”, surpreendentemente bem no papel) e Matthew McConaughey (naquela que pode ser considerada a melhor interpretação da sua carreira, a consagrá-lo definitivamente como um dos grandes atores da sua geração).   

Com True Detective, a TV prova mais uma vez que a combinação de liberdade criativa e orçamento amplo podem proporcionar entretenimento ao nível da arte (para o desgosto dos cultores do bom cinema, que veem os estúdios cada vez mais atados à lógica dos blockbusters descerebrados, que, no afã de fazer centenas e centenas de milhões de dólares, apelam ora para roteiros de cropologia, ora para os piores lugares-comuns da falta de inteligência do público que paga para ver um diretor anódino conduzir atores medíocres em cenas de puro CGI). E Nic Pizzolatto desponta não apenas como um dos melhores roteiristas da atualidade, mas como o autor de uma façanha notável para um estreante: a criação de um clássico instantâneo do gênero policial na TV.

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