quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O PASSADO TEM QUE MORRER: Em "O Grande Hotel Budapeste", Wes Anderson cria um fábula divertida sobre um hotel símbolo da alienação histórica no período entre-guerras


Em 1888, o escritor Raul Pompeia expunha ao público pela primeira vez, em formato de folhetins, as suas “crônicas de saudades”. Era a história de Sérgio, um adulto que relembrava sua passagem pelo Ateneu, um colégio interno renomeado do Rio de Janeiro, para o qual havia sido enviado pelo pai.

As lembranças da personagem Sérgio remetem a um menino que atravessa um rito de passagem: a transição da infância/adolescência para a vida adulta. Distante dos pais, submetido aos rigores de uma instituição comandada com mãos de ferro pelo diretor Aristarco, o Ateneu não figura apenas como o “lugar“ onde a ação da trama se passa; ele é um personagem por si só, a concentrar o núcleo narrativo em derredor do qual as personagens articulam-se de uma maneira ou outra.

Essa estrutura narrativa, que compõe o romance “O Ateneu”, clássico da Literatura brasileira, é a mesma que inspira “O Grande Hotel Budapeste” (The Grand Budapest Hotel, 2014). Dirigido por Wes Anderson, a história de amizade entre o Sr. Gustave (Ralph Fiennes) e seu empregado e pupilo Zero (Tony Revolori) dá-se em torno da alienação histórica representada pelo Hotel Budapeste, que acaba por se converter num Ateneu do cinema, isto é, um personagem próprio.
 
Inicialmente, é preciso esclarecer que, à diferença de Pompeia, Anderson não está preocupado com a verossimilitude do seu relato. O enredo que pretende contar é propositalmente uma fábula, como se tivesse sido extraída de um cartum. Embora o contexto histórico – a Europa no período que intermedeia a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais – possa ser facilmente identificado, a preocupação com a sua reconstituição fidedigna é irrelevante para a trama. O motivo é que o diretor propositalmente se volta a contar uma fábula, o que fica claro já nas cenas iniciais do filme, quando vemos uma leitora caminhar até o busto do escritor do livro intitulado "O Grande Hotel Budapest".   
 
Em seguida, como se saltasse das páginas de um romance, o escritor ganha voz e, num recurso bastante engenhoso de metanarrativa fílmica, passa a narrar sua lembrança da conversa por meio da qual o proprietário do Grande Hotel Budapeste contou-lhe como atingiu essa condição cheia de prestígio.

É assim que conhecemos Zero Moustafa, um “lobby boy” recém contratado pelo Sr. Gustave, o excêntrico gerente do hotel. Com o tempo, Zero torna-se mais do que um empregado para Gustave: adotado como pupilo, ele toma partido das dificuldades imanentes ao ofício de quem busca manter o refinamento de um grande e elegante hotel. Também fica sabendo das artimanhas usadas pelo gerente para cativar a clientela de ricas senhoras idosas que frequentam o hotel (e como ele tira proveito disso).

Uma dessas hóspedes vem a falecer. Pela sua herança, toma corpo uma batalha acirrada entre os herdeiros e o Sr. Gustave, uma vez que seu nome consta no testamento como legatário de um quadro renascentista de valor artístico (e financeiro) incalculável.

Esse é o enredo do filme, que se torna divertido à medida que a estética peculiar do cinema feito por Wes Anderson apresenta-se bastante eficiente para narrar sua fábula do período entre-guerras. É como se o diretor tivesse a pretensão de resumir, em “O Grande Hotel Budapeste”, um pouco de cada um dos seus trabalhos anteriores: a direção de arte afetada de “Moonrise Kingdom” (idem, 2012), o tom cômico-dramático de “Os Excêntricos Tenenbaums” (The Royal Tenenbaums, 2001) e o mote aventuresco de “Viagem a Darjeeling” (The Darjeeling Limited, 2007). Tal desprendimento declarado do fatual é que justifica a lógica de uma “história dentro de outras histórias”. No fim, não existe história nenhuma, pois tudo não passa de fabulação na cabeça da leitora que se deixa entreter pela ficção do livro que lê. Também por isso Anderson pode brincar a todo o momento com a narrativa, notadamente na maneira caricatural com que ora apresenta os trejeitos do Sr. Gustave (o carisma da personagem cresce ante a excelente atuação de Ralph Fiennes), ora o vilão Jpoling (Willem Dafoe).

Ralph Fiennes e Tony Revolori em cena de "O Grande Hotel Budapeste"
 
Desde a construção das personagens, é notável a maneira com que o diretor, de início, leva o público a ver Zero qual um reles empregado subalterno de um hotel europeu chique em estágio de treinamento. Essa visão superficial e faceira, porém, não permanece, pois logo Zero assume a condição de vítima da guerra – a anunciar as consequências dos grandes conflitos bélicos europeus sobre a migração de povos. O próprio gerente do hotel é o símbolo dos tempos evanescentes da cultura europeia de elegância e opulência, deixada para trás por um continente ora mergulhado num presente autoritário, notadamente pela ascensão de governos fascistas ao poder.  

Visto dessa forma, o Grande Hotel Budapeste não é senão um locus anacrônico. Diferentemente do Ateneu de Pompeia, que se amolda justamente ao autoritarismo da educação brasileira no século XIX, o Hotel Budapeste está deslocado do momento histórico belicista que o circunda no século XX, gerido por um homem alienado por uma fantasia de prosperidade e luxo que só ele consegue conceber. Assim, enquanto o Sr. Gustave representa o passado que recalcitra em sucumbir, Zero constitui o presente trágico de um continente em conflito. São dois mundos que se chocam decisivamente no espaço do hotel (daí seu protagonismo na estrutura da narrativa), que não pode mais resistir às mudanças históricas e, portanto, permanecer incólume sob o passadismo alienado e extravagante da sua gerência (não é à toa que o Sr. Gustave, em dado momento do enredo, parará na prisão).   

Todos esses elementos conjugados (personagens carismáticos, roteiro ágil com uma narrativa divertida, que mascara perspicazmente o contexto bélico crudelíssimo do período entre-guerras, a estética colorida afetada e justificada pela proposta de fabulação) fazem de “O Grande Hotel Budapeste” um resumo exemplar da carreira de Wes Anderson. Ao mesmo tempo, o filme evidencia os méritos artísticos do diretor estadunidense, que, sem vacilar, pode ser considerado com toda a justiça um dos mais criativos realizadores a trabalhar em Hollywood – um notável fabulista do cinema hodierno.

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