Sempre que um estagiário novo passa a
trabalhar comigo no gabinete, tenho a preocupação de dar-lhe alguma orientação
quanto ao rumo de sua carreira jurídica. Não é uma preocupação comum no meio
forense, já que, dado o ritmo alucinante de processos que chegam diariamente
para análise, na maior parte das vezes, juízes, promotores e advogados limitam-se
a "jogar processo" no colo do estagiário e "passar-lhe um
modelo". Conheço bem essa postura, pois, quando estagiário, eu mesmo fui
vítima dela (não te ensinam nada, mas te cobram a resolução de tudo). Hoje, como
profissional já inserido no mercado, portanto, tento agir de maneira
distinta, a cultivar, no espaço microfísico de poder em que estou inserido, uma
cultura de respeito ao jovem profissional que dá os primeiros passos na sua carreira.
Imbuído desse propósito, uma das primeiras
perguntas que faço ao estagiário diz respeito ao seu futuro: pretende atuar na
advocacia privada ou seguir a carreira pública? A depender da pretensão, as
escolhas a serem feitas mudam substancialmente. No meio jurídico, há diferenças notáveis na atuação de um profissional liberal e um servidor público, que vão desde a maneira do ingresso (concurso público), passando pelo vínculo (institucional ou empregatício) à remuneração (salário ou vencimento/subsídio).
Certa vez, então, quando iniciava a minha atividade como advogado, inquiri um estagiário do escritório sobre o que pensava do seu futuro profissional. A resposta não poderia ter sido mais direta: "Quero entrar no serviço público, para enriquecer como todo mundo faz". Percebi de imediato que o estagiário estava, puerilmente, a reproduzir um pensamento que associa potencial de enriquecimento às carreiras no Estado. Embora, por hipocrisia, ninguém o admita, trata-se de um pensamento corrente em nossa sociedade, que decorre, a toda evidência, da nossa cultura patrimonialista. Segundo essa maneira de pensar, a res publica não é o patrimônio de todos, mas sim "propriedade sem dono". Logo, não há problema em apropriar-se daquilo que "não pertence a ninguém".
Certa vez, então, quando iniciava a minha atividade como advogado, inquiri um estagiário do escritório sobre o que pensava do seu futuro profissional. A resposta não poderia ter sido mais direta: "Quero entrar no serviço público, para enriquecer como todo mundo faz". Percebi de imediato que o estagiário estava, puerilmente, a reproduzir um pensamento que associa potencial de enriquecimento às carreiras no Estado. Embora, por hipocrisia, ninguém o admita, trata-se de um pensamento corrente em nossa sociedade, que decorre, a toda evidência, da nossa cultura patrimonialista. Segundo essa maneira de pensar, a res publica não é o patrimônio de todos, mas sim "propriedade sem dono". Logo, não há problema em apropriar-se daquilo que "não pertence a ninguém".
Ao longo da minha carreira jurídica (que nem
é tão longa, já que não sou tão velho assim), pude me deparar com processos
criminais envolvendo fraudes em licitações, corrupção, peculato etc. Em vários desses casos, havia acusações contra prefeitos de cidades pequenas do interior, quase sempre a
envolver desvio de verba federal - uma verba enviada para subsidiar pautas essenciais
como saúde e educação. O agente público criminoso, que age na esfera da
corrupção enraizada no aparelho estatal, nunca pensa nas consequências do desvio. Ele é incapaz de antever que aquele dinheiro desviado é o recurso que falta para a merenda das crianças na escola, para a compra de remédios ou para pagar um salário digno aos professores. Ele só
vê cifras num papel timbrado. É um dinheiro que chega não se sabe de onde; é uma soma generosa que "cai do céu"; é o dinheiro público que (para ele) não tem dono. Sentado em sua cadeira, o bandido infiltrado no Estado reflete: "No Brasil é tudo avacalhado, todo mundo rouba mesmo". A seguir, arruma seu colarinho branco, enquanto conclui que é moral ele tirar uma fatia daquele "bolo de dinheiro que não tem dono". Ele,
o agente criminoso, pensa exatamente como o estagiário do meu exemplo: usa o
serviço público para enriquecer. E ainda acha que é justo, pois tudo o que faz é garantir o seu padrão de vida "sem prejudicar ninguém".
No meio forense em que atuo, não é preciso
praticar crime para externar o desejo de "enriquecimento". Há, por
parte de alguns operadores do Direito, uma disputa escancarada por toda sorte
de auxílios, diárias, assessorias, cumulações de comarcas, substituições etc.,
que paguem "uma graninha a mais no final do mês". Assim, mesmo quem não tem
condições (nem físicas nem intelectuais) de atuar em várias comarcas ao mesmo tempo, entra no jogo
pelo dinheiro. Resultado: presta-se um péssimo serviço público, corolário de
uma justiça cínica, ligada mais a interesses pecuniários imediatistas que a um autêntico compromisso com
os direitos das pessoas. Não acho ruim o desejo do trabalhador de querer
ganhar mais; ruim é o sujeito comprometer-se com a prestação de um serviço de
justiça à sociedade sem ter disposição (real) para executá-la a contento em
favor do povo. Curiosamente, essa é uma conduta verificável sobretudo nos escalões mais elevados da burocracia, ou seja, nos cargos de maior remuneração.
Penso então que todos aqueles que almejam a
carreira pública, em todos os Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e
Judiciário), deveriam cerca-se de cautelas contra a cobiça desvairada,
infelizmente tão comum em nossos dias. Esse desejo consumista exacerbado, que
se encontra espalhado em nossa sociedade, está na gênese do desvario de quem busca sobressair-se pelo requinte dos seus hábitos de consumo. Faz-se um esforço inaudito para
ostentá-los diante dos seus pares, como se possuir um carro alemão importado, um
closet recheado de bolsas e sapatos de
grifes, ou viajar regularmente aos Estados Unidos, constituísse o mérito maior
que um ser humano pode alcançar na vida.
Mas há muitas maneiras diferentes de enxergar
mérito na existência humana. Há muitas formas de identificar alguém como uma
pessoa bem sucedida. Um padrão de vida elevado, com hábitos de consumo
luxuosos, é apenas um deles – embora, na era do “culto às celebridades”,
certamente seja o mais comum. Apesar disso, nem todos veem o consumismo padrão-ostentação
como o ápice da homo sapiens. De
acordo com a minha visão de mundo, por exemplo, ele não significa nada. Na minha escala de
valores, digno de admiração é o professor que trabalha no interior
mais remoto, dedicando-se ao ensino de crianças em salas de aula improvisadas,
para receber um salário aviltante. Admirável é o assistente social que ajuda a
tirar moradores das ruas, o policial honesto que não aceita propina, o médico
que atende bem seus pacientes no posto de saúde de uma comunidade pobre, o juiz e o promotor que não trabalham na comarca só às terças, quartas e quintas (o famoso esquema "TQQ"). Mas
essa é a minha escala de valores, a escala de valores que ao longo da minha vida eu construí. Infelizmente, não é uma escala tão comum
em nossa sociedade iletrada, que ainda valoriza muito pouco a educação e o comportamento ético como feitos dignos da mais viva admiração.
Deveríamos, portanto, mudar nossa escala de
admiração. Valorizar alguém pela contribuição que dá à sua comunidade mais que
pela cobertura do prédio em que reside. Deveríamos admirar quem escreve, quem
publica, quem traduz, quem ensina. Acima de tudo, deveríamos admirar quem
estuda e faz uso desse conhecimento em prol de uma causa social qualquer, que
contribui para diminuir a desigualdade e o sofrimento das pessoas - especialmente das pessoas mais pobres. É
essa a escala de valores que eu quero para a minha sociedade. É por ela que
tenho lutado todos os dias da minha vida.
Por isso, quando ouvi aquelas palavras do meu
estagiário no escritório, a anunciar seu desejo de “ficar rico” no serviço
público, vi-me, de chofre, surpreso e entristecido. Surpreso, porque não esperava
ouvir a resposta prenhe duma sinceridade tão grande. Entristecido, porque
se cuidava de alguém muito jovem, porém já derrotado por uma cupidez retrógrada e envilecida, que
está na gênese da nossa cultura patrimonialista e dos muitos males da corrupção estatal.
Mas não me deixei dobrar. E, não obstante eu
mesmo fosse bem jovem à época (tinha 24 anos), respirei fundo e procurei
dissuadir o estagiário da sua ideia fixa de enriquecimento no serviço público. Não o fiz de modo
veemente, a ralhar-lhe qual um superior hierárquico no trabalho. Sabia que essa
postura não funcionaria, especialmente numa sociedade em que explodem a cada semana novos escândalos de corrupção. Procurei convencê-lo de forma sutil. Contei-lhe então
uma velha história que eu tinha lido nas páginas de algum livro do qual não me
recordava o nome. Disse-lhe que, numa época qualquer, um estudante orgulhoso tinha
ido ao encontro do homem que era apontado como o maior sábio da região. O homem
morava em um local distante. Assim, o estudante viajara por vários dias até
encontrar a casa do sábio. Ao chegar ao seu destino, o estudante deparou-se com um ancião. Disse-lhe que viera de
muito longe para conhecer o homem de maior sabedoria em toda a província. Comovido,
o velho sábio, que era um homem de suprema humildade, convidou-o a hospedar-se em sua
casa. Mas o estudante, notando que a casa era pobre, com poucos móveis e nenhum
luxo, recusou o convite, dizendo que estava só de passagem. Ao que o sábio
respondeu: “Eu também”.
No fundo, nós estamos – todos, sem exceção - apenas
de passagem neste mundo. Nenhum de nós é permanente e nenhum dos nossos bens
nos acompanhará no dia da nossa morte. Somos como o ponteiro de um relógio cego
ao qual temos a possibilidade de dar uma destinação moralmente útil, empregando
as horas das nossas vidas em favor dos mais necessitados. Ou podemos viver sob a lógica maquinal
da cobiça desbragada, sem limites, que quer encher a casa de móveis de luxo,
insensível ao mundo que sangra ao nosso redor. Podemos guiarmo-nos por esse ideal cobiçoso, que não hesita em
atropelar todos os limites éticos e, até mesmo, legais. Numa palavra: fazer tudo para juntar a maior quantidade possível de dinheiro - mesmo que seja o dinheiro público da merenda das crianças, dos remédios do hospital ou do salários dos professores. Talvez seja a hora de pararmos para pensar se toda essa nossa avidez por dinheiro é imprescindível para a nossa felicidade. Quem sabe, pondo-nos a refletir, descubramos que viver uma
vida mais simples, desapegada do consumismo irracional, pode ser a
verdadeira sabedoria. Um caminho possível para a felicidade. Quem está só de passagem, afinal, não deveria preocupar-se tanto em enriquecer...
Foi assim que, naquela conversa informal no
escritório, como um jovem advogado em início de carreira, tentei convencer meu estagiário
dos riscos inerentes ao seu pensamento. Isto é, que o serviço público não é (não deveria ser) o lugar propício para enriquecer. Não fiquei sabendo até hoje se ele me ouviu...
Lição de moral e de humildade! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, caro Henrique.
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