sábado, 24 de fevereiro de 2018

Breganejo fascista: da "universidade" para o quartel



A história da música popular no Brasil é marcada por saltos criativos. Os mais recentes, no entanto, a exemplo do que ocorre no mercado fonográfico dos Estados Unidos, foram todos orientados no sentido da mercantilização e perda progressiva de qualidade. Da geração radical da MPB, que intrepidamente arrostou a roda viva da ditadura militar para ver a banda passar, passou-se, na década de 1980, à rebeldia criativa do rock brasileiro, que inspirou tantos corações jovens da geração coca-cola. Nos anos 1990, já com o Collorido no Planalto após o fim da ditadura militar, iniciou-se uma decadência inglória. Desceu-se ladeira abaixo durante a "década perdida" dominada pela axé music (com suas micaretas e "poesia sobre nádegas"), pelo pagode dor-de-corno e pela "passarinhada traída" dos primeiros ídolos do breganejo. Foram tempos horrendos de audição, quando era comum escutar nas rádios do País canções a entoar "Vai descendo gostoso, balançando a bundinha", "Pense em mim, chore por mim, liga pra mim, não liga pra ele", "Ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo, sempre que eu vejo ele do seu lado, morro de ciúmes, estou enlouquecendo". Assim se caminhava rumo ao desastre.  

Naqueles idos, houve quem achasse que tínhamos atingido o fundo do poço da falta de inteligência e criatividade artísticas. Infelizmente, eles estavam errados.

Depois que o prometido fim do mundo não veio na vira do milênio, chegaram os anos 2000. Com ele, especialmente a partir de 2010, vimos a juventude brasileira afundar no conservadorismo. Trocou-se a contestação sofisticada da MPB e a irreverência do rock de outrora pelas letras sobre playboys "baladeiros" e "pegadores". Era o início da ascensão do sertanejo universitário - um movimento que, por não ter absolutamente nada de sertanejo que não seja o visual com chapéu e bota, pode ser classificado com maior precisão como uma das muitas corruptelas da antiga música brega. Daí ser mais preciso designá-lo por "breganejo universitário".

Eis um tempo periclitante, no qual gritar deselegantemente "ai se eu te pego" de dentro do seu Camaro amarelo, estacionado na porta da faculdade, tornou-se símbolo de sedução viril. A ordem agora era a ostentação de luxo e riqueza em videoclipes diluviosos de refrães monossilábicos. No coração dos jovens, Renato Russo foi substituído por Michel Teló e Luan Santana. Saiu a advertência humanista de ser preciso "amar as pessoas como se não houvesse amanhã"; entrou a cantoria folgazã do "meteoro da paixão" com a profundidade de um pires e a complexidade filosófica das frases de para-choque de caminhão.   

Naqueles idos, houve novamente quem achasse que tínhamos atingido o fundo do poço da falta de inteligência e criatividade artísticas. Infelizmente, eles estavam errados.

Eis que chega a notícia: Gusttavo Lima, um dos principais nomes do breganejo universitário, posta vídeo numa rede social, a atirar com um fuzil num clube de tiro estadunidense. Na legenda, declara apoio a um presidenciável conservador de extrema-direita, famoso por suas afirmações homofóbicas, machistas e racistas. "Hoje em dia no Brasil só está desarmado o cidadão de bem. Revogação do Estatuto do Desarmamento já... Nossas família e nossas casas protegidas", escreveu (sic) o cantor.

Enquanto artista, a obra de Gusttavo Lima é musicalmente desprezível. Nunca ninguém esperou qualquer perenidade naquilo que ele produz. É um produto descartável, feito para ganhar dinheiro junto a um público cada dia mais imbecilizado e, portanto, intelectualmente pouco exigente. Mas não se pode negar o protagonismo de Lima no movimento do breganejo universitário: nascido como uma "versão genérica" de outro cantor muito ruim (Luan Santana), ele conquistou seu espaço. Seus refrãos monossilábicos ("tchê, tchê, re, re") continuam a tocar nas rádios e a serem promovidos pelos "jabás" na TV. E, não obstante seus shows já tenham começado a espiral paulatina de perda de público, ele continua a alimentar as aspirações comerciais da indústria fonográfica do País.

Nesse contexto, o que a súbita manifestação política de Lima estaria a indicar? Um arroubo isolado? A tentativa desesperada de uma estrela decadente chamar atenção? Ou poderíamos pensar no marco inaugural duma novíssima fase dentro do breganejo? Estaria o breganejo a trocar o ambiente "universitário" pelo "aquartelado"? Agora que os ídolos jovens do breganejo universitário começam a envelhecer, estariam a abandonar suas letras sobre baladas e "pegações", a substituí-lo por um discurso linha dura, tradicionalista, voltado à defesa "da família e dos bons costumes" e ideologicamente simpático à facilitação do comércio de armas e ao método beligerante de solução de conflitos - vulgarmente conhecido como "vou meter bala"?

Seja qual for o significado da manifestação política de Gusttavo Lima, não surpreende observar a guinada crescente de ídolos do breganejo em favor do discurso fascista (Zezé Di Camargo, que, em entrevista, negou a existência da ditadura militar no Brasil, foi só a ponta do iceberg da ignorância). Afinal, há uma proximidade muito grande entre o sujeito lírico das letras do breganejo universitário e os arautos redivivos do fascismo do século XXI: em ambos os casos, há deficiência profunda de juízo crítico e capacidade de reflexão, alicerçada numa retórica intelectualmente deficitária, prenhe de soluções fáceis, inexequíveis ao lidar com problemas complexos. E, se houver algo que a ciência da História esteve sempre a ensinar-nos, é isto: quando a mente é vazia, o ódio penetra e floresce com facilidade no coração.   

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